Me prostrei na esquina da igreja da Consolação para
tentar ter uma visão melhor de um trio elétrico que deslizava vagarosamente
pela multidão. O que pensei serem as luzes de alguma viatura da GCM ou da polícia
nada mais era do que tiaras com chifres piscantes de diabo. O grupo de
diabinhos cintilantes acompanhava, à frente, o trio elétrico que estrondava em
potentes caixas de som uma música remixada da Rihanna.
Senti meu corpo ir para trás cada vez que o trio se
aproximava. Entendi, então, que aqueles carros gigantescos eram protegidos e cercados
por uma corda puxada por funcionários da segurança. Conforme passavam,
empurravam as pessoas mais próximas, e elas acabavam empurrando outras pessoas,
e essas pessoas empurravam mais outras, num exemplar efeito dominó. O som quase
me ensurdecia quando a música parou de repente e um travesti com voz de gralha
começou a falar. As pessoas aplaudiam, e eu sentia que elas faziam aquilo por
pura osmose ou euforia da bebida. O trio elétrico era da Salete Campari, uma
famosa drag queen de São Paulo e dona da Dangerous, boate conhecida no centro
da cidade. Salete agradecia o apoio que teve de Fulano e de Cicrano para poder
desfilar no trio. Campari, com sua peruca loura, quase que se perdia em meio a
go-go boys com suas danças pseudo-sensuais e a travestis cansadas em suas
fantasias que pesavam quilos. Gays com óculos exuberantes acenavam do alto do
trio, mandavam beijos e apertavam os colhões para o público espalhado pela rua,
com certo sentimento de superioridade que ocasionavam-lhes, talvez, a sensação
de serem superstars. Já me cansava de olhar para cima quando o trio elétrico
sumiu da minha vista, engolido pela aglomeração de pessoas, junto com a música
que deu lugar a um conjunto de vozes que espocavam de todos os cantos.
Estava acompanhado de Fábio, um amigo do teatro
que, por algum motivo que envolvia a J.K. Rowling havia ganhado o apelido de
Harry. Há dois dias tinha terminado um namoro de três anos com um comissário de
bordo e, segundo ele, queria descontar toda a sua raiva e tristeza no álcool e
nos prazeres da carne. Tratou de comprar uma garrafa de vinho.
- Você vai pagar as cervejas depois, ok?
Ok. Os comerciantes ambulantes estavam em constante
alerta por causa do rapa, que poderia aparecer à qualquer momento e lhes tirar
as mercadorias. Pouca gente, quase ninguém, vendia comida, pois sabiam que
lucrariam pouco. Era quase como um desejo generalizado pela embriaguez que
levava muitos gays, lésbicas, bissexuais e heterossexuais à loucura na Parada. As
latas de cerveja custavam R$ 6,00, um assalto a mão armada se comparado o preço
do produto ali vendido com os de estabelecimentos diversos. Mas o vinho era
marca presente em quase todas as mãos por ali. Apesar de custar R$ 10,00, o
teor alcoólico era muito maior do que o da cereja, o que significava um porre
mais rápido. Era realmente muito mais vantajoso optar pelo vinho de sétima
categoria, levando em consideração que “vinho” era somente um nome bonito para
aquela mistura explosiva de suco de uva com etanol, gasolina ou qualquer outra
porra amarga. Além do mais, sendo a cerveja uma bebida para ser saboreada
gelada, o vinho não precisava passar por essas frescuras, já que os
comerciantes carregavam as bebidas dentro de mochilas fechadas e sem gelo;
caixas de isopor não existiam, sendo por demais chamativas e chamar a atenção
de algum GCM era o que os comerciantes menos queriam que acontecesse.
Harry iniciou o que seria naquele domingo uma série
de beijos avulsos em pessoas aleatórias, o que é de praxe acontecer em qualquer
Parada Gay que se preze. Através de olhares flertou um garoto bonitinho logo à
nossa frente. Logo me dei conta de que teria que começar a fazer alguma coisa
caso seu não quisesse me sentir um candelabro ao lado dos dois. Não demorou a
acontecer o que já era esperado, e logo me apossei da garrafa de vinho. O sentimento
de exclusão aumentava conforme olhava para meu amigo e seu recém companheiro de
pegação. Junto a ele me vinha, também, o início de uma embriaguez. Quase me
amaldiçoei por ser tão fraco ao álcool, mas logo me dei conta de que as únicas
coisas que havia ingerido naquele dia eram um copo de café, alguns baseados e
muitos cigarros. Me resignei a contemplar em silêncio aquela multidão
alvoroçada.
- Me empresta o isqueiro?
Um gay de cabelos lambidos e penteados para o lado
se prostrou à minha frente. Havia me chamado atenção sua extrema magreza e
alguns resquícios de cocaína grudados nos cantos das narinas. Logo após dar um
longo trago em seu Marlboro vermelho, começou a falar que estava cansado e
triste por ir para a Parada tão tarde.
- Aos domingos não consigo acordar depois das duas
da tarde.
Lembro que seu nome era Rodrigo e que morava em
Interlagos. Todas as outras coisas que me dizia entravam por um ouvido e saíam
pelo outro. Entretanto, não achei conveniente evitá-lo, e vez ou outra eu lhe
respondia com monossílabas ou sorrisos amarelos. Eu sabia que o que ele queria
nada mais era do que um beijo ou uma boa trepada, mas eu não estava a fim de
nada, pelo menos não com ele e não naquele momento. Quando me ofereceu balas de
melancia imaginei que ele daria outras investidas, mas creio que Rodrigo tenha
se incomodado com minha certa apatia e se retirou, despedindo-se de mim com um
breve beijo no rosto. Uffa!
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