Medo e Delírio na Paulista: um domingo na Parada Gay (parte 1)

A igreja da Consolação estava cercada de pessoas. Ao longe, o som abafado de música eletrônica se misturava a gritos e o vozerio de gente alucinada. À beira das calçadas, pessoas sentavam-se para aliviar a tontura causada pela embriaguez. Assim que saí da praça Roosevelt, a primeira coisa que vi foi o vômito bordô de uma garota extremamente pálida, acolhida por um amigo que lhe acariciava os cabelos desgrenhados. Pelas ruas, muito lixo. Pilhas de latinhas de cerveja, bitucas de cigarro e garrafas de vinho podiam facilmente ser vistas aqui e ali. Casais desfilavam dançantes de mãos dadas, uns fantasiados e outros tão comuns que passariam por qualquer heterossexual.
Me prostrei na esquina da igreja da Consolação para tentar ter uma visão melhor de um trio elétrico que deslizava vagarosamente pela multidão. O que pensei serem as luzes de alguma viatura da GCM ou da polícia nada mais era do que tiaras com chifres piscantes de diabo. O grupo de diabinhos cintilantes acompanhava, à frente, o trio elétrico que estrondava em potentes caixas de som uma música remixada da Rihanna.

Senti meu corpo ir para trás cada vez que o trio se aproximava. Entendi, então, que aqueles carros gigantescos eram protegidos e cercados por uma corda puxada por funcionários da segurança. Conforme passavam, empurravam as pessoas mais próximas, e elas acabavam empurrando outras pessoas, e essas pessoas empurravam mais outras, num exemplar efeito dominó. O som quase me ensurdecia quando a música parou de repente e um travesti com voz de gralha começou a falar. As pessoas aplaudiam, e eu sentia que elas faziam aquilo por pura osmose ou euforia da bebida. O trio elétrico era da Salete Campari, uma famosa drag queen de São Paulo e dona da Dangerous, boate conhecida no centro da cidade. Salete agradecia o apoio que teve de Fulano e de Cicrano para poder desfilar no trio. Campari, com sua peruca loura, quase que se perdia em meio a go-go boys com suas danças pseudo-sensuais e a travestis cansadas em suas fantasias que pesavam quilos. Gays com óculos exuberantes acenavam do alto do trio, mandavam beijos e apertavam os colhões para o público espalhado pela rua, com certo sentimento de superioridade que ocasionavam-lhes, talvez, a sensação de serem superstars. Já me cansava de olhar para cima quando o trio elétrico sumiu da minha vista, engolido pela aglomeração de pessoas, junto com a música que deu lugar a um conjunto de vozes que espocavam de todos os cantos.

Estava acompanhado de Fábio, um amigo do teatro que, por algum motivo que envolvia a J.K. Rowling havia ganhado o apelido de Harry. Há dois dias tinha terminado um namoro de três anos com um comissário de bordo e, segundo ele, queria descontar toda a sua raiva e tristeza no álcool e nos prazeres da carne. Tratou de comprar uma garrafa de vinho.

- Você vai pagar as cervejas depois, ok?

Ok. Os comerciantes ambulantes estavam em constante alerta por causa do rapa, que poderia aparecer à qualquer momento e lhes tirar as mercadorias. Pouca gente, quase ninguém, vendia comida, pois sabiam que lucrariam pouco. Era quase como um desejo generalizado pela embriaguez que levava muitos gays, lésbicas, bissexuais e heterossexuais à loucura na Parada. As latas de cerveja custavam R$ 6,00, um assalto a mão armada se comparado o preço do produto ali vendido com os de estabelecimentos diversos. Mas o vinho era marca presente em quase todas as mãos por ali. Apesar de custar R$ 10,00, o teor alcoólico era muito maior do que o da cereja, o que significava um porre mais rápido. Era realmente muito mais vantajoso optar pelo vinho de sétima categoria, levando em consideração que “vinho” era somente um nome bonito para aquela mistura explosiva de suco de uva com etanol, gasolina ou qualquer outra porra amarga. Além do mais, sendo a cerveja uma bebida para ser saboreada gelada, o vinho não precisava passar por essas frescuras, já que os comerciantes carregavam as bebidas dentro de mochilas fechadas e sem gelo; caixas de isopor não existiam, sendo por demais chamativas e chamar a atenção de algum GCM era o que os comerciantes menos queriam que acontecesse.

Harry iniciou o que seria naquele domingo uma série de beijos avulsos em pessoas aleatórias, o que é de praxe acontecer em qualquer Parada Gay que se preze. Através de olhares flertou um garoto bonitinho logo à nossa frente. Logo me dei conta de que teria que começar a fazer alguma coisa caso seu não quisesse me sentir um candelabro ao lado dos dois. Não demorou a acontecer o que já era esperado, e logo me apossei da garrafa de vinho. O sentimento de exclusão aumentava conforme olhava para meu amigo e seu recém companheiro de pegação. Junto a ele me vinha, também, o início de uma embriaguez. Quase me amaldiçoei por ser tão fraco ao álcool, mas logo me dei conta de que as únicas coisas que havia ingerido naquele dia eram um copo de café, alguns baseados e muitos cigarros. Me resignei a contemplar em silêncio aquela multidão alvoroçada.

- Me empresta o isqueiro?

Um gay de cabelos lambidos e penteados para o lado se prostrou à minha frente. Havia me chamado atenção sua extrema magreza e alguns resquícios de cocaína grudados nos cantos das narinas. Logo após dar um longo trago em seu Marlboro vermelho, começou a falar que estava cansado e triste por ir para a Parada tão tarde.

- Aos domingos não consigo acordar depois das duas da tarde.

Lembro que seu nome era Rodrigo e que morava em Interlagos. Todas as outras coisas que me dizia entravam por um ouvido e saíam pelo outro. Entretanto, não achei conveniente evitá-lo, e vez ou outra eu lhe respondia com monossílabas ou sorrisos amarelos. Eu sabia que o que ele queria nada mais era do que um beijo ou uma boa trepada, mas eu não estava a fim de nada, pelo menos não com ele e não naquele momento. Quando me ofereceu balas de melancia imaginei que ele daria outras investidas, mas creio que Rodrigo tenha se incomodado com minha certa apatia e se retirou, despedindo-se de mim com um breve beijo no rosto. Uffa!

(continua)

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