Aurora Encardida (pt. 3)

É claro que sou um renegado quando se trata de relacionamentos. Sou um erro ambulante e solitário. Quando o havia visto, nada de romântico aconteceu. Meu coração não bateu mais forte, nem a música na boate ficou abafada. O mundo não parou. Era apenas ele lá, de boné e largado, dançando desengonçado.
O detalhe mais triste e cruel de tudo é que, à primeira vista, notava-se tratar de um heterossexual, um maldito heterossexual perdido numa boate gay. Eu olhava pra ele, ele olhava pra mim, e nada – nada. Ele dançava, talvez brisado de maconha ou qualquer outra droga, um pouco lerdo.
Se eu tivesse um revólver, teria me matado. Ali mesmo, na frente dele. Um gay que se interessa pelo único hétero de uma balada gay tem que morrer. Não é possível, um castigo divino ou o quê? Não conseguia desgrudar os olhos dele, todo malandro daquele jeito. Já imaginava ele me comendo de tudo quanto que é jeito.
Fiquei indignado comigo mesmo e decidi sair da boate. Não suportaria ter de presenciar aquele cara beijando alguma bissexual louca de cachaça. E ele ali, parado em frente ao balcão, com cara de sono e tudo o mais. Senti vontade de mijar e de sair correndo. De gritar e lascar um soco naquele imbecil. Imbecil por quê? Por que não gostava do mesmo que eu? Eu não tinha o direito de achá-lo um imbecil. Talvez tivesse pensado isso porque eu me considerava um completo imbecil, babando por alguém impossível. Imbecil. Imbecil.
Ouvi o cara pedindo não sei o quê. O tal do Maneco serviu cerveja. O cara do boné nem olhava pros lados. Tinha toda a atenção voltada pro copo. Notei que ele usava uma camisa larga com a estampa do Racionais MC’s. Pelo menos gostava de música boa. Percebi também que a espuma da cerveja pintava de branco o bigodinho dele.
Não sei se Glória percebeu, mas eu deveria estar com um cara de babaca olhando pra ele. Glória entrou sozinha. Estava com uma maquiagem diferente e o cabelo parecia ainda mais desgrenhado. Ainda tinha estilo e elegância em cima dos saltos altos que batucavam no chão de madeira. Ela sorriu pra mim. Acenei. E o cara da boate olhou para Glória e se levantou.
- Ei, olha pra cá.
O cara da boate ajeitou o boné. Ergueu a blusa larga e deixou à mostra um revólver. Glória parou, estupefata. Acho que ela tinha segurado o ar. Olhei pra sua boca pintada e vi aqueles lábios moverem-se, e sua voz rouca dizer o nome do fulano, o nome que não consegui ouvir mas que não tinha importância saber naquele momento.
- Quero que você morra olhando pra mim.
Então o cara tirou o revólver da cintura e atirou. Bam, bam, bam. As pessoas se assustaram com os estrondos. Acho que até mesmo Glória se assustou antes de cair e se remexer no chão. Vi o cara olhar pra mim. Eu já aguardava um tiro na minha testa quando ele saiu correndo do bar.
- Socorro, polícia, socorro, pelo amor de Deus, caralho!
O Maneco gritava e chorava. Eu não consegui me erguer da mesa. Minhas pernas tremiam. Eu olhava para o corpo de Glória que se debatia sobre a própria poça de sangue. Parecia uma epiléptica.
Abandonei a minha bebida. Caminhei até Glória estendida e tive vontade de chorar, não sei porquê. Ela não era nada minha.
Saí do boteco. O dia raiava. O sol, lá longe, com preguiça se estendia no horizonte. O cinza de São Paulo impregnava, mesmo com a luz. Cidade adoecida. Voltei pra casa.



FIM

Um comentário:

Maria disse...

Isso aconteceu mesmo, não aconteceu? ...
Você continua escrevendo incrivelmente, Leandro. A gente consegue ler com tanta simplicidade, mas tão presa ao texto. É isso, você consegue agarrar a gente, convencer, prender. Acho isso um poder. E você pode.

Andava com muita saudade de tudo isso. Com saudade de você.

Meu beijo