O tempo tem medo de si mesmo?

Eu olhava para o espelho e não conseguia acreditar. Ouvia minha mãe berrar lá da cozinha, pedindo para que eu saísse do banheiro, talvez ela estivesse estendendo as roupas no varal. Eu não estava fazendo nada demais. Apenas fiquei me encarando no espelho, de camisa, cueca e meia, fazia frio e meu corpo parecia não se importar. Comecei a ver pontos pretos surgirem em diversos pontos do meu maxilar, ao redor da minha boca, aquelas coisas pequenas se tornaram fios, um emaranhado de fios, e então eu tinha uma barba, o meu cabelo escureceu, e assim como as flores começam a morrer nos galhos das árvores mais belas, pontos brancos surgiam lá e cá em minha cabeça, os primeiros sinais de velhice. Conseguia ouvir o berro dos meus filhos brincando no jardim e sentir o cheiro da feijoada que minha esposa preparava. De repente tudo se tornou calmo e silencioso, eu não conseguia piscar, minha mãe já não gritava mais, porém, eu continuava com a barba no lugar, e os fios brancos iam se espalhando como uma nódoa pegajosa, e então o que antes eram vozes das minhas crianças fazendo algazarra, tornou-se falas desconexas, uma voz de homem me pedindo dinheiro, uma garota com tatuagem me dando um abraço apertado, e minha esposa do lado, sempre do lado, já com os nítidos pés de galinha na face que, apesar de tudo, não havia deixado de ser bela. Foi então que ruídos de crianças brotaram outra vez do silêncio, e percebi que eram os meus netos, filhos dos meus filhos, e, portanto, também filhos meus, filhos ao quadrado que trepavam no balanço encrespado na jabuticabeira, correndo pra lá e pra cá com baldes de água. Teve um tempo, em toda aquela demora, que não havia um fio negro sequer em minha pele, tudo era branco ou parcialmente grisalho, e meu rosto inteiro assemelhava-se ao mais antigo papiro. Já não havia a esposa do meu lado, talvez houvesse partido como o meu filho que também não consegui mais ver e ouvir. A filha tornou-se tão semelhante quanto a mãe, com as mesmas marcas do tempo no semblante abatido, tão bela que o sol fazia questão de sair em dia nublado. E meus netos crescerem, viraram homens e mulheres sadios, e colocaram ao redor de mim mais e mais crianças, bisnetos que deviam, também, estar brincando no terreiro lá fora, mas disso não tinha certeza pois quase não conseguia enxergar nada, nem este meu rosto velho à menos de um palmo de distância do espelho, mas conseguia ouvi-los todos com perfeita nitidez. E foi então que cada cantoria, cada palavra pronunciada, frases jogadas no tempo e no espaço foram se desintegrando como seda, e delicadamente tudo se tornou branco, branco como os meus cabelos, a minha barba, e já não havia nada mais para ser visto, nem ouvido e muito menos sentido. Apenas toda aquela brancura que me tomara por dentro. Até que percebi que ainda estava ali, menino sem pêlos nas pernas e nos sovacos, com a primeira espinha na testa, de camisa, cueca e meias, um menino que agora sentia frio e tinha medo de apanhar da mãe irritada que esbravejava, ordenando para que eu saísse do banheiro.

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