Entre homens, gays e bichas ou os sentidos de uma masculinidade deslocada



Quero propor aqui uma breve - e até mesmo rasa - reflexão sobre os sentidos sociais que permeiam a masculinidade de homens, gays e bichas. Adiante, pretendo também explicar o porquê de eu fazer a distinção entre essas três nomenclaturas. No entanto, não pretendo trazer aqui referências teóricas, mas sim vivências minhas e de outras pessoas que conheci. Por isso, acredito que esse artigo seja superficial, e que o/a leitor/a precisará recorrer a estudos mais densos e sérios no campo do gênero e das sexualidades caso tenha interesse em se aprofundar nas temáticas aqui abordadas.

Um corpo (des)locado

Não há nada de extraordinário na minha infância. É a história de uma criança branca, cisgênero, de classe média/classe média baixa, morando em uma periferia da cidade de São Paulo. Desde muito pequeno, meus trejeitos socialmente considerados “femininos” me colocaram e me deslocaram de grupos sociais dos quais participei - família, escola, igreja e, já na adolescência e juventude, trabalho. Tudo isso por causa de uma performance de gênero que, talvez inconsciente e involuntariamente, eu exerci.

A parte biológica da minha existência - meu corpo de homem e tudo o que ele representava: um pênis, ombros largos, pelos que iriam crescer sob minha pele quando atingisse a puberdade etc - e a performance que eu exercia tendo esse corpo como plataforma, foram os primeiros contatos que a sociedade teve comigo. Arrisco a dizer que, antes mesmo de descobrirmos as trajetórias e as especificidades de alguém, temos contato com o seu corpo e o que há nele de mais “palpável” (no sentido de experiência, e não do toque): a performance.

Me sentia mais à vontade estando com as meninas e suas bonecas de desgrenhados cabelos loiros. Estar com os meninos e suas bolas e chutes e golpes de lutador eram sempre um campo violento no qual eu evitava vivenciar. Eu transitava entre ambos os mundos como forma de experimentá-los e também para dar a sociedade o que ela esperava de mim: que eu, um menino biológico, me comportasse e vivenciasse dentro desses moldes milenares do que é “ser” homem.

Estar com as meninas e suas bonecas era quase sempre um alívio, mas longe de ser um paraíso, pois meu corpo habitando aquele espaço feminino era motivo, também, de estranhamentos por parte daquelas meninas. Imagino que era estranho para elas ter um garoto penteando suas bonecas e, mais estrutural do que isso, a simples presença de um homem ali poderia ser motivo de incômodos etc.

Já entre os garotos, meu corpo desengonçado não era útil para fazer gols, nem para desferir os mais ágeis golpes de luta. Mas estar ali acalmava minha família, meus professores e toda uma sociedade que sentia - e ainda sente - necessidade de que os papéis sexuais sejam exercidos dentro da heteronormatividade. Mas estar entre os meninos me possibilitava conhecer meu próprio corpo, já que eu gostava de tocá-los, olhar e me deleitar mentalmente - e algumas vezes, fisicamente, inclusive. Ali, eu podia experimentar uma política do querer, e quiçá uma política do desejo. Políticas, essas, que eu não podia e não consiga exercer com as meninas.

Meus trejeitos “femininos” e os meus quereres/desejos habitavam um corpo errado: de homem. E aquele corpo não correspondia ao que a sociedade queria, e por isso essa mesma sociedade iniciava contra mim um processo de deslocamento, me colocando à margem de inúmeras experiências sociais. Incansavelmente a sociedade me gritava: “Seja homem!”, “Vire homem!”, “Comporte-se como um homem”. Ora, se o mundo me pedia para ser/agir como um homem, então é fato que eu não era encarado como tal.

Eu não era homem, nem mulher. Eu era um corpo deslocado, mesmo que vivenciando os privilégios de uma criança branca e cisgênero de classe média/classe média baixa. Isso não quer dizer que não tenha vivenciado também os privilégios de ser homem. Eu não conseguia vivenciá-los em sua plenitude, já que, para desfrutar complementamente deles, eu necessariamente precisava cumprir com as expectativas sociais em torno do “ser homem”, e essas expectativas queriam me colocar em um quarto que eu não queria e não conseguia estar: me atrair afetivamente e sexualmente por mulheres, participar da “cultura do macho”, da virilidade, exercer as agendas sociais ditas de meninos - futebol, carrinho, lutinha etc - e assim por diante. E é nesse sentido que afirmo a masculinidade de bicha - e não do gay, nem do homem heterossexual cisgênero - como uma masculinidade deslocada.

No entanto, é preciso afirmar que, independente de qualquer coisa, nem homens, nem gays, nem bichas, estão isentos de reproduções machistas, sexistas, misóginas e transfóbicas. Todas essas categorias - homem, gay, bicha - estão calcadas em uma estrutura bastante endurecida, que é o da masculinidade. Ser homem é participar, mesmo que de forma involuntária, de uma estrutura patriarcal da qual somos todos beneficiados, em menor ou maior grau.

Arte: Paula Rego
Um corpo gay (des)locado

Aqui, dou um salto gigantesco da minha infância/adolescência (aonde existia um processo de auto descoberta) para tempos quase contemporâneos, onde já comecei a me identificar como gay e a me orgulhar disso. Esse espaço de tempo foi habitado por muitas experiências que me deslocaram ou me alocaram mais ou menos em campos sociais. Foi habitado por violências físicas e psíquicas, cujas marcam existem até hoje. Habitado, também, por experiências sexuais que me fizeram entender que, o que se passava em meu âmbito privado, se reverberava no âmbito público, e por isso a minha sexualidade era também política, já que meu corpo homossexual era alvo de surgimentos e desmantelamentos de políticas públicas que, direta ou indiretamente, me afetavam substancialmente.

No Ensino Médio, após um longo processo de descobertas, fui me colocando socialmente como homem bissexual, dotado de um discurso amo-pessoas-independente-de-sexos. Era um campo mais favorável para exercer práticas homossexuais, já que a nomenclatura “bissexual” carregava também um privilégio heterossexual. Ou seja: sentia que a sociedade “deixava” eu me relacionar afetivamente e sexualmente com homens porque havia também a possibilidade disso acontecer com mulheres. E eu não me importava muito com os discursos bifóbicos de que eu estava “confuso”. Eu só queria me proteger do frio da homofobia no cobertor quentinho dos privilégios da bissexualidade.

Larguei esse cobertor e decidi encarar o frio. Me afirmei como gay, delimitando ainda mais os espaços dos meus quereres/desejos: eu só me relaciono afetivamente e sexualmente com homens, porque nunca me senti afetivamente e sexualmente atraído por mulheres. Dizer o contrário era mentir para mim mesmo e, portanto, mais um ato de violência contra minhas subjetividades.

Já no “mundo gay”, fui percebendo que, assim como no primário ou no ensino fundamental, existiam alocamentos e deslocamentos dos quais eu precisava conhecer e me reconhecer ali. O “mundo gay” é heterogêneo e não uma tábua rasa. Há distintas culturas, ou seja, modos diferentes de se vivenciar a homossexualidade a partir de hábitos, consumos etc. Marcadores sociais como raça e classe são fundamentais para um gay participar mais ou menos desses universos, e fazer a intersecção dessas experiências é fundamental para que possamos compreender o “mundo gay” para além do que nos vendem em pacotes de Doritos.

Percebia, por exemplo, que gays mais “afeminados” experimentavam de forma mais latente os dissabores da homofobia e da exclusão no campo dos afetos. Em meu círculo de amizades, os gays que mais sofriam as violências homofóbicas eram justamente os desajustados, as bichas, que passavam longe dos comportamentos heteronormativos reproduzidos por gigantesca parcela de homossexuais masculinos.

Compreendo essa reprodução de comportamentos heterossexuais por parte de gays como um escudo, uma forma de proteção. Desde a epidemia de HIV/aids nas décadas de 80 e 90 até os dias atuais, a comunidade LGBT, e em específico a de gays, vem passando por processos estigmatizantes cujo principal intuito é nos retirar a humanidade. Acredito, e de forma bastante hipotética (não quero dar essa reflexão como encerrada), que a epidemia de HIV/aids foi um motivo importante para que existisse um processo heteronormatizador entre gays, afim de se distanciar dos estigmas do gay “aidético” (esse termo extremamente desumano ainda é utilizado pela sociedade) para se aproximar de uma masculinidade heterossexual e cisgênera. Ou seja: também uma forma de se enrolar no cobertor quentinho dos privilégios para fugir da gélida homofobia.

É a partir desse sentido que acho necessária a distinção entre gays e bichas. Aqui, coloco “gays” como os discretos-e-fora-do-meio, que, de certa forma, usufrem do privilégio de não serem essencialmente colocados na caixa do “bicha” ou “viado”. São esses os gays que “se dão o respeito” e não dão “pinta”. Neles, não há politização alguma do âmbito privado, ou seja, para eles, o pessoal não é político, só algo que deveria acontecer entre quatro paredes. Isso é extremamente danoso quando falamos em conquistas de direitos e de formulações de políticas públicas. Por isso, os gays “discretos” e “fora do meio” são mais “respeitados”, e desconfio desse “respeito” que a população heterossexual cisgênera lhes oferece. De qualquer forma, são menos alvo de ataques homofóbicos e, se compararmos com as bichas, tendem a conquistar os melhores cargos nas empresas e outras instituições.

Ser “discreto” e “afeminado” são experiências que pertencem a campos sociais muito complexos e individuais. Ninguém é essencialmente nada, ao meu ver. Se somos mais “discretos” ou mais “afeminados”, é porque somos resultado de uma série de relações sociais nas famílias, nas escolas, nas empresas, entre amigos/as e colegas, e que não há problema algum ser mais “discreto” ou mais “afeminado”. O que me incomoda em particular é a inocência ou ignorância de acharmos que somos essencialmente assim ou assado. Somos fruto de uma complexa rede de relações sociais, culturais, históricas, econômicas etc.

Voltando: eu não me via inserido no campo do gay “discreto” e “fora do meio”, porque eu nunca fui discreto e, mais do que nunca, estava completamente no “meio” do “mundo gay”. Portanto, novamente, eu me sentia deslocado. E ainda me sinto, às vezes, confesso. É por isso que retomo de forma bastante contemplativa os xingamentos que ouvi (e ainda ouço) para entendê-los e ressignificá-los. Se ontem era chamado de bicha e me sentia ferido por essa nomenclatura, e por isso me desviava dela, hoje seguro com cuidado o termo “bicha”, o contemplo, encontro belezas nele, o abraço, o apalpo, e então afirmo para mim e para o mundo: sim, eu sou bicha.

Sei que minha barba e minhas roupas masculinas fazem com que a sociedade me veja como um homem, mas nos labirintos da minha mente e alma, eu não vejo um homem. Também não vejo uma mulher, muito menos um gay discreto e fora do meio que quer se distanciar de tudo que possa remeter à homossexualidade. Eu quero as aproximações. Por isso, encaro minha masculinidade como deslocada, e diariamente a vivencio em minha casa, meu trabalho, nas ruas, na universidade, sempre me percebendo como um ser transpassado por experiências sociais e históricas e, por isso, alguém passível de construções e desconstruções, assim como esse texto, que não tem pretensão alguma de edificar ou desmantelar qualquer estrutura.


Arte: Paula Rego



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