O bolo


Ela olhou para o rapaz com um sorriso afetuoso. Deslizou as mãos quentes sobre seus cabelos desgrenhados e molhados de suor. Apanhou uma cadeira. O rapaz ergueu lentamente a face, e de olhos fechados, gemeu baixo qualquer palavra. Abriu os olhos com a mesma velocidade com que levantou a cabeça, olhando fixamente para a mulher à sua frente. Ela sorriu mais uma vez, acariciando o queixo do homem com a ponta das unhas pintadas de vermelho. Passou os dedos pelo pescoço, ombros e, por fim, tocou seu peito nu. Podia sentir o pulmão do homem enchendo-se e esvaziando-se, a respiração trêmula.

A mulher se levantou da cadeira e se dirigiu para a pia da cozinha. O barulho metálico que vinha da gaveta de talheres fez com que o homem se remexesse em sua cadeira. Aproximou-se dele, tendo em mãos um serrote. Verificou por alguns instantes se o rapaz estava bem amarrado em sua cadeira, fechou as cortinas floridas e uma escuridão tomou conta do recinto. O homem se remexeu na cadeira ao sentir as mãos dela tocarem seus pés descalços. Ela passeou as mãos pelas pernas do rapaz, que gemia a cada vez que seu corpo era tocado.

Seu grito foi abafado pelo pano que lhe tapava a boca. Pôde sentir sua pele esquentar com o sangue morno que jorrava de seu corpo. A mulher cravou ainda mais profundamente os dentes do serrote, rasgando com voracidade a carne do homem que se contorcia de dor. Quando ela sentiu a lâmina parar sobre algo sólido, soube que já havia chegado à tíbia, e redobrou a força para serrar o pé da vítima. O barulho da tíbia e da fíbula se rompendo fez com que o homem derrubasse a cabeça sobre o peito, num temporário desmaio.

- Este pedaço do bolo vai para a sua mãe.

Ela olhou para o pé do rapaz caído sobre o chão da cozinha banhado em sangue. Apanhou sobre a pia uma bacia com sal grosso, enfiando o que sobrara da perna do homem ali dentro. Este, recobrando a consciência, abriu os olhos emitindo um sussurro de ardor. A mulher acariciou seus cabelos, dando-lhe um beijo na testa. Sentou-se sobre o chão com o serrote em mãos, segurou o outro pé do homem, e novamente cravou os dentes da ferramenta em sua carne. Ele chacoalhou a cabeça diversas vezes. Os olhos rompiam-se em lágrimas, não conseguia mais movimentar o que sobrara de suas pernas, mais um ruído de ossos rompendo, e seu segundo e último pé caíra sobre o chão coberto de sangue.

- Este pedaço do bolo vai para o seu pai.

Ela segurou com firmeza a panturrilha do homem, empunhando o serrote com a outra mão. Tocou os dedos no joelho e, posicionando a ferramenta em cima dele, tirou outros murmúrios agonizantes do rapaz. As veias romperam-se bruscamente. Com um único puxão, quebrou a patela semicerrada. Fez o mesmo ritual na outra perna, deixando-o sangrar com o que restara de suas coxas.

- Este pedaço do bolo vai para seu irmão, e este para sua irmã.


A dor fazia sua mandíbula estremecer, sentia frio em todo o corpo despido de roupas, uma dor aguda percorria por todas suas veias, enquanto a mulher despejava sobre suas feridas mais sal grosso. Ela parou à sua frente com o serrote em mãos, carregando-o consigo como quem segura um filho. Ele tinha muito que dizer, talvez suplicar, mas, mesmo que seus lábios não estivessem presos por aquele pano, talvez não conseguisse dizer uma única letra se quer. Sua língua latejava, havia a mordido enquanto gritava em desespero.

A mulher, em tom pausado, anunciara sua liberdade. Uma réstia de esperança que ele guardava no peito crescia gradativamente. Esboçou um sorriso no rosto enquanto via a mulher ir para trás da cadeira, agachar-se e tocar suas mãos algemadas. O serrote deslizou pelos dois pulsos do rapaz que, com um grito fúnebre, deslizara o corpo para frente, caindo de rosto sobre o chão lavado em sangue. Sentiu uma dor cruciante na testa, ergueu o braço, e com terror constatou não ver mais sua mão ali. O carpo e metacarpo haviam-se separado do rádio, onde ele podia ver o branco dos seus ossos serrados para fora. O mesmo havia acontecido com a outra mão, caída ao lado do seu corpo, remexendo-se em seus últimos impulsos nervosos.

- Estes dois pedaços de bolo vão para nosso filho, amor.

O pano enrolado em sua boca havia se soltado. Ao cair no chão da cozinha, seus lábios foram de encontro com as poças de sangue. O rapaz podia sentir na garganta o gosto do seu próprio sangue; mais do que o gosto de sangue, o gosto da morte. Avistou o serrote nas mãos da mulher, em pé ao seu lado, sorrindo. Sua boca estava livre e poderia gritar, mas a mordida havia anestesiado sua língua, onde sabia que conseguiria apenas balbuciar frases inaudíveis. A dor agia como sanguessugas em seu corpo, arrancando de si a força e a vida.

A mulher esticou o que sobrara de um de seus braços e iniciou sua separação do ombro. Ela fitou a face rija do homem, os olhos brancos, a boca semi-aberta à procura de ar numa respiração arfante. Ela teve dificuldades ao arrancar o úmero da escápula, a ferramenta havia arrancado junto parte da clavícula e mais outros gritos de agonia. Ele se remexia sobre o chão, os olhos abertos, arregalados como os de uma coruja, a mandíbula tensa a morder a própria língua. Ela apanhou o braço e deixou-o de lado.

- Este pedaço do bolo vai para sua avó.

Cumprindo o mesmo ritual com o outro braço da vítima, teve que pisar sobre o membro do corpo para poder tirá-lo do lugar. Um barulho oco de algo sólido se rompendo ecoou em seus ouvidos, e o outro braço estava em suas mãos, como um troféu tenebroso.

- Este outro pedaço de bolo vai para sua afilhada.

A mulher havia percebido que restavam apenas alguns minutos de vida do homem estirado no chão. Sentou sobre o tórax dele, acariciando seu peito e pescoço. Curvou-se paulatinamente, encostando sua boca nos lábios do homem. Iniciou um longo beijo, onde sua língua era a única a se movimentar, a única a ter sentimento. Pôde ver seus olhos, idênticos como há dez anos atrás. Neste exato instante, ela se viu parada em frente a um bar, um cigarro parado nos dedos duros de frio, o cachecol azul-marinho caindo-lhe pelos ombros, e um homem, este mesmo em que estava sentada, aproximar-se de si e oferecer um copo de vodca, e logo depois um beijo.

A lâmina do serrote em sua mão desenhou um corte retilíneo na garganta de seu companheiro. Logo depois mais outro, mais outro e mais outro corte, que resultaram na decapitação do cadáver. Ela se levantou rapidamente dali, agachou-se e apanhou pelos cabelos a cabeça do homem. Olhou para ele, e com felicidade, viu ali naqueles lábios macios, agora frios e mortos, um sorriso estampado. Mais do que um sorriso de felicidade, um sorriso sincero.

Ela, então, deixou a cabeça em cima da mesa, subiu correndo as escadas de sua residência, descendo novamente para a cozinha carregando algumas caixas de papelão e uma caneta no bolso da calça jeans. Apanhou um dos pés e botou-o dentro de uma das diversas caixas e fechou com fita adesiva. O mesmo fizera com o outro pé, pernas, mãos e braços. Carregando o que sobrara no corpo nas costas, ou seja, o tronco e coxas, depositou o resto do corpo do homem em um freezer no qual abrira com alguma dificuldade.

Voltou sua atenção à cabeça, parada no centro da mesa de jantar, como um objeto de decoração. A mulher apanhou-o com delicadeza, deu um novo beijo na boca do cadáver e o pôs dentro da última caixa. Enxugou algumas lágrimas que fugiram de seus olhos e fechou o objeto com a fita adesiva.

- E este pedaço do bolo vai para sua amante.


Conto publicado originalmente no blog Cabeças Cortadas, em 2009. 

Nenhum comentário: