Um relato direto do front


Na tarde do domingo, dia 27, eu e meus pais percebemos certa movimentação atípica no bairro do Jaçanã, onde moramos há mais de seis anos. Helicópteros sobrevoavam baixo as casas das redondezas. Minha mãe chutou um palpite: “Deve ter acontecido algum acidente”. E, de fato, ocorreu. Mas não um acidente envolvendo automóveis, como havia pensado.

Uma hora depois minha mãe entrou em meu quarto, pálida, me chamando para ir à rua. Corri até lá e o que vi foi uma cena típica das manifestações de junho: viaturas da Força Tática estacionadas e policiais munidos de escudos e armamento pesado. Todos os meus vizinhos, movidos pelo medo e a curiosidade, saíram de suas casas para ver o que acontecia. Uma lotação com os vidros em cacos. Uma densa fumaça cinza erguia-se entre as nuvens. Alguma coisa de muito errado acontecia no Jaçanã.

Com o celular em mãos, eu e meu pai descemos a Rua Francisco Alves Bezerra, onde havia concentração da PM. Um ônibus da empresa Sambaíba ardia em chamas. Os policiais tentavam apagar o fogo com a ajuda das mangueiras que os moradores haviam disponibilizado de dentro dos portões de suas residências. Conversei com um jornalista do Estadão, para saber o que ocorria, e ele me disse que não sabia de nada: “Ficaram sabendo que havia fogo aqui e me mandaram pra cá”.

Policial pediu pra eu não filmar ou fotografar. Não obedeci. 

Falei então com um morador, que me contou o que São Paulo inteira já sabe: moradores da região, revoltados com a morte “acidental” de Douglas Martins, de 17 anos, pela polícia, resolveram protestar. Ônibus, lotações e carros foram queimados. Recolhi alguns projéteis de gás lacrimogênio e balas de borracha que ficaram espalhados na calçada da minha casa. Através do Facebook, ia recebendo outras informações de alguns conhecidos, também moradores da região: furtos a estabelecimentos e agências bancárias destruídas.

O domingo terminou sem qualquer tranquilidade aos moradores do Jaçanã. Dormimos ao som dos helicópteros e das bombas furiosas lançadas pela PM. Dormimos com a certeza de que, no dia seguinte, tudo voltaria à sua normalidade. Mas estávamos amargamente enganados.

Hoje, segunda-feira, dia 28, os resquícios da manifestação do dia anterior eram visíveis: cestos de lixo derretidos e pedaços de pau e pedra espalhados pelas ruas do bairro foram apenas algumas das marcas que os manifestantes deixaram. Sem falar das marcas deixadas pela PM, com seus projéteis amassados pelo chão.


Projéteis lançados pela PM. Nenhum deles possui data de validade. 

Meu irmão, que é psicólogo e trabalha num centro de acolhimento a pessoas em situação de rua, na Rua Alto Paraguai, nos ligou informando que a PM havia informado aos funcionários que uma nova manifestação aconteceria naquele dia, e que era para todos deixarem as portas trancadas. Toque de recolher.

Por volta das 17h as cenas do dia anterior retornaram de algum poço profundo. Fumaça, helicópteros, Força Tática, ruídos de disparos. Toda a vizinhança, amedrontada (mas também curiosa), acompanhava o ocorrido em frente ao portão de suas casas. Minha mãe e eu fomos até uma vizinha. Vimos a Avenida Mendes da Rocha apinhada de viaturas com seus giroflex cintilantes, cercadas por uma densa fumaça que não sabíamos se vinha de algum objeto queimado ou das bombas de gás lacrimogênio.

Ao retornar para casa, nos deparamos com um grupo de mais ou menos 50 manifestantes, em frente a minha casa. Quase todos com os semblantes cobertos, chutavam furiosamente um Gol quadrado, ano 96, que há muito estava abandonado. A maioria daquelas pessoas era do sexo masculino, possuindo entre 10 a 18 anos, no máximo. Através de ajuda coletiva, eles conseguiram tombar o Gol, terminando de quebrar o que restou de suas vidraças. Um deles chutou um cesto de lixo, que foi parar em meus pés. Informei que éramos moradores e que estávamos voltando para casa. O menino, com seus 13 anos (talvez), e com o rosto coberto por uma blusa laranja, fez sinal de “jóia” e disse: “Firmeza, chapa, passa aí. Mas tomem cuidado pra não se machucarem”. Assim, retornamos para casa, ilesos. Logo em seguida os manifestantes foram dispersados pela polícia. Depois disso uma dezena de PM's (acompanhados de dois cinegrafistas de alguma emissora) chegaram ao local e ajeitaram o carro capotado.


Policias desviram carro capotado pelos manifestantes.

O que se seguiu já foi noticiado por todos os veículos de comunicação e seria redundante de minha parte aqui o relatar.

Não quero julgar essas pessoas. A mídia e, em especial, o apresentador do programa Cidade Alerta, já o fizeram com maestria. Vejo muito mais do que “vandalismo” no que essas pessoas fizeram e continuam fazendo (neste exato momento, ainda posso ouvir os helicópteros). Vejo revolta dos moradores de um bairro, por vezes, esquecido por nossos governantes. Vejo revolta pela morte de um jovem, que deixará a dor da ausência na vida dos familiares, amigos e conhecidos – jovem, este, que não foi o primeiro e nem será o último a ser morto “acidentalmente” pela polícia.

Sei que amanhã encontrarei pelas ruas do Jaçanã, outra vez, as marcas dessas manifestações. Marcas, estas, que sumirão em alguns dias, depois que os funcionários da limpeza urbana as limparem. Mas a marca da morte de um filho, esta sim, nem o tempo vai conseguir limpar do coração da senhora Rossana Martins de Souza Rodrigues.

Para finalizar, quero deixar aqui o trecho da música “Bala Perdida”, do grupo de rap Facção Central:

"Moradores pegam pedras, pneus pra queimar.
As portas de aço do comércio começam a baixar.
Via expressa interditada nossa ONG vai protestar.
5 viação bola branca começam a queimar.
Uma loja de eletrônicos não fechou, foi saqueada.
Subiu web cam, hand cam, phillips plasma.
Cherockee capotada com motorista no volante,
o choque solta rottweiler pra desfigurar manifestante.
No jornal o âncora da exclusiva:
Moradores orquestrados pelo tráfico em confronto com a polícia..."




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