São Paulo: uma das musas da Trupe



Foto: Divulgação


Entrevista por Leandro Fonseca


Uma big band? Talvez. Com 13 integrantes, a banda Trupe Chá de Boldo poderia levar esse título, se não fosse o estilo musical – estilo que, já disseminado por aí, é de “vanguarda”. Entretanto, é árdua a tarefa de estipular um rótulo, pois ritmos como samba, rock e tango constroem a identidade única e inominável do grupo.

Já é quase clichê dizer que a origem de uma banda se deu na faculdade, entre amigos e conhecidos. A história da Trupe Chá de Boldo não é diferente. Com idade entre 20 a 30 anos, os integrantes decidiram criar o grupo em 2005. E criaram. Tanto criaram que hoje a Trupe se consolida como uma das mais criativas do cenário nacional, ao lado de nomes como O Terno e Filarmônica de Pasárgada.

Constituída por Gustavo Gallo (vocalista e violonista da banda), Leila Pereira (voz), Carlos Conte Neto (compositor, radialista e cronista), Guto Nogueira (percussão), Marcos Ferraz "Mumu" (saxofone), Julia Valiengo (voz), Pedro "Gom Gom" Manesco (bateria), Rayrai Galvão (trompete, clarinete e gaita), Gustavo Ramus "Cabelo" (guitarra e cavaquinho), Felipe Botelho (baixo), Tomás Bastos (guitarra), Rafael Werblowsky (percussão), Dan Leite (compositor), Cecilia Góes (voz) e Theo Craveiro (produção e fotos) – UFA! –, a Trupe Chá de Boldo já lançou dois discos. O primeiro deles, “Bárbaro”, foi lançado em 2007 e o segundo, “Nave manha”, em 2012.

 O blog Verborragia Conveniente convidou a banda Trupe Chá de Boldo para uma conversa. Leia agora a entrevista gentilmente concedida.

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• Como surgiu o nome da banda? 

Hoje somos 13, mas a Trupe começou com três pessoas. O Galo, cantor da Trupe até hoje, e nossos amigos Dan Leite e Carlos Conte decidiram montar uma banda que tocasse somente nos dias pós-festa. Ou seja, uma banda que animasse aqueles dias de marasmo e ressaca que se seguem às grandes comemorações. Tínhamos no repertório, inclusive, uma música chamada “1o de Janeiro”. Bom, contra a ressaca, nada melhor que o boldo. E aí surgiu a Trupe Chá de Boldo, tocando principalmente marchinhas de Carnaval animadas e festivas. Ao longo dos anos o som foi mudando, mas o nome ficou.


• O estilo da Trupe Chá de Boldo foi rotulado de “vanguardista” pela crítica, devido às assumidas influências de Tom Zé e Jorge Mautner em suas músicas. Isso interferiu, de alguma forma, na imagem da banda? 

 Bom, a gente não se pauta na crítica pra produzir e é claro que ninguém vai assumir que faz música pra crítico, mas hoje em dia a internet faz de todo mundo um crítico em potencial, então, há uma preocupação em ler tudo que escrevem sobre a gente, seja matéria, resenha, blog, twitter, post no facebook, comentário no youtube, etc. É interessante se relacionar com o olhar de fora também, entender como a banda está sendo vista e a imagem que se cria em cima do nosso trabalho. Nesse sentido, a crítica afeta a gente e isso é ótimo.
 Relacionar a Trupe com a vanguarda paulistana é natural porque a gente é muito próximo mesmo de alguns integrantes do Grupo Rumo (alguns de nós estudaram na escola de música Domus com o Pedro Mourão e o Akira Ueno) e o nosso primeiro baixista, parceiro e fundador da banda, o Dan Leite, é filho do Geraldo (o mesmo do carnaval do Geraldo, joga no google e ouve essa música se é que você ainda não conhece), do Rumo também. Itamar, Isca, Premê, a gente gosta muito, ouviu muito e está totalmente dentro do nosso espaço afetivo, na nossa vitrolinha.
Tem um monte de coisa: Titãs, Gang 90, Frenéticas, Caetano, Gil, Sérgio Sampaio, Tom Zé. Aliás, o Tom Zé falou sobre a gente recentemente e disse tudo: existe uma apropriação de um alfabeto que ele ajudou a criar. A gente não faz o que ele faz, mas usa esse mesmo alfabeto. Ele é demais, o conhecemos e recentemente ele virou nosso clínico geral e mestre de Do-in. Além destes, também existe uma vontade de ouvir o que se está produzindo hoje, pela nossa geração: Tatá Aeroplano, Peri Pane e o Canções Velhas Para Embrulhar Peixes, Juliana Perdigão e o Graveola e o Lixo Polifônico, A Filarmônica de Pasárgada, o Memórias de um Caramujo. Tem tanta banda boa perto da gente...
E na verdade, não é só música, a gente acaba se influenciando muito por cinema, teatro. Isso tudo diluído em treze dá no que dá.


 • De 2005 (quando surgiu a Trupe) até agora, quais foram as transformações que os integrantes sentiram no amadurecimento da banda? 

As transformações dentro da banda foram muitas, e nunca param de acontecer. Em sete anos, só para dar alguns exemplos, nossa dinâmica interna mudou, nossas influências musicais se deslocaram, nossa relação com a música se tornou mais profunda e assim por diante. Por outro lado, responder uma pergunta sobre o nosso próprio "amadurecimento" parece estranho. Quando lançamos o segundo disco, muita gente falou o quanto ele era mais "maduro" do que o primeiro. E pode ser até que soe assim, mas dentro da Trupe não costumamos vê-los de um modo tão “hierárquico”, e sim como discos que são frutos únicos de momentos diferentes: para um disco (o “Bárbaro”) que reunia peças de 5 anos de trabalho (leia-se festa pra caralho) fazia total sentido captar o som daquela maneira mais "nua". Já para fazer o que depois veio a ser o Nave Manha, nossas orelhas tinham outras necessidades e fomos procurar outras texturas para um som de 13, e, assim, ouvir mais o que "os caras" do lado estavam tocando (ouvir internamente a própria banda), o que acabou buscando uma relação de outra estética entre os naipes, buscando uma tensão estética maior.
De fato, o trabalho de pré-produção do “Nave Manha” foi mais cuidadoso do que o do “Bárbaro", assim como a pesquisa musical que realizamos para gravá-lo foi mais minuciosa. Mas isso foi porque precisou ser assim, e não porque "ser mais cuidadoso é ser melhor". Era o que fazia sentido para cada trabalho, para cada momento. Talvez isso demonstre não amadurecimento, mas que nós estamos nos transformando, e isso é o mais importante.



• Como foi o processo de criação do primeiro CD, “Bárbaro”? 

O “Bárbaro” tem um certo caráter de retrato. Ele é um registro de uma série de músicas que a Trupe tinha composto até ali, em 2010, e que faziam parte do repertório dos nossos shows. Num certo momento sentimos que essas músicas – algumas estavam no repertório há quase quatro anos – mereciam um registro caprichado, e convidamos o Alfredo Bello (DJ Tudo) para produzir o disco. Nesse sentido, é um trabalho feito com bastante espontaneidade, no qual não procuramos alterar muito os arranjos que já executávamos.
 Além do Alfredo, convidamos para participar do “Bárbaro” algumas pessoas com as quais já tínhamos dividido o palco e tínhamos uma relação próxima, como Tatá Aeroplano, Leo Cavalcanti e Gero Camilo. Olhando hoje, parece que a gravação desse disco nos permitiu fechar um ciclo e começar outro; ou outros.


• Como foi o processo de criação do segundo CD, “Nave manha”?

Mais ou menos um ano depois de lançar o “Bárbaro” a gente já tinha no repertório uma boa quantidade de músicas novas, que foram compostas e arranjadas em outro momento da nossa experiência enquanto banda. Elas já eram resultado de novas vivências, de algumas viagens, e traziam outras referências e outras pesquisas de sonoridades. Quando isso ficou claro para nós, a vontade de entrar em estúdio se tornou maior, e foi aí também que decidimos chamar o Gustavo Ruiz para produzir o novo disco. A partir daí o processo de criação se intensificou, com algumas novas canções surgindo e um trabalho cada vez mais cuidadoso com os arranjos. A presença do Gustavo Ruiz foi vital nesse momento, mas as 13 cabeças foram colocadas para pensar e inventar.
No “Nave Manha”, mais uma vez convidamos algumas pessoas próximas para participar, como o Tatá, a Simone Sou e o Peri Pane. Mas arriscamos também trazer pra perto pessoas que nos instigavam, mas com as quais tínhamos menos contato, como o Abujamra, a Márcia Castro etc. Nesse sentido, assim como em outros, parece que o “Bárbaro” é um CD mais “de casa”, enquanto o “Nave Manha” procura alçar um voo para mais longe...


• Quais os principais desafios de se "viver de música"? 

 Bem, há uma esfera de burocratização enorme, ainda. Ecad, OMB, algumas iniciativas de regulamentação da atividade musical e da circulação das obras um tanto quanto obsoletas. Há mais gente pensando "para trás" do que matutando como pode e deve ser o que vem pela frente. Os esforços às vezes soam pouco prospectivos no sentido de pensar que novas possibilidades podem ser trazidas com a nova dinâmica de circulação da obra musical. Novos encontros. Novas liberdades. Novas velocidades. Novas (curtas) distâncias. Novos espaços, consolidando novos lugares. Tanta coisa ainda pode pintar de bacana. Ainda existem uma série de intermediadores entre o músico e a sua música, o lance é entender aqueles que têm um papel catalisador, aberto, e aqueles que operam numa chave de circulação antiga (de posse de direitos autorais, de "dependência" de bilheterias estrondosas a qualquer custo, etc.). Existe muito espaço hoje para tensionar o momento em que estamos vivendo de produção de música (e de arte) na cidade. A hora é de olhar para as novas necessidades, e não buscar novos meios para servir às velhas soluções.
 Para se pensar sobre o que é viver de música, recomendamos também ouvir a canção "Um dia útil", do Maurício Pereira.


• Em diversas músicas, nota-se referências claras à São Paulo. O que mais inspira a banda nessa cidade? 

São Paulo é o nosso espaço, é onde vivemos. O gosto pela estrada e a vontade cada vez maior de conhecer outros cantos do país não muda essa realidade. É com São Paulo que interagimos diariamente, e isso nos afeta, nos transforma. No “Bárbaro”, por exemplo, compusemos “À Lina” às vésperas de tocar no Teatro Oficina, projetado por Lina Bo Bardi, um espaço de liberdade em meio a uma cidade com tantos muros. No “Nave Manha”, a faixa “No escuro” cita a Estação da Luz, e as ruas escuras no dia do apagão. “A Rolinha e o Minhocão”, com humor, brinca com o prazer na rua Augusta em contraposição à falta de prazer de ficar sob um engarrafamento no Elevado Costa e Silva, o Minhocão. São Paulo é uma das musas da Trupe Chá de Boldo. E se a cidade nos afeta, esperamos poder, com nossa música e nossos shows, poder afetar de algum modo a cidade.


• A música “Na Garrafa” compara o desejo de se ter a pessoa amada com os efeitos do álcool e da maconha. Fale mais sobre isso.

“Na Garrafa” foi uma música que mexeu bastante com o público, recebemos boas críticas sobre ela e também sobre o seu videoclipe, lançado no começo deste ano. Na internet também tem gente falando que é “apologia” e que “jesus não gosta”, a gente se diverte com isso. Mas achamos que essa inquietude foi despertada não só pela metáfora com as drogas mas sobretudo porque o público se identifica com a maneira simples e direta de descrever um desejo louco e também de uma disposição a não se contentar com pouco.


• Há um preconceito mantido por artistas independentes em relação a “vender-se para a mídia”? A Trupe Chá de Boldo possui algum problema em relação a isso, a ter seus trabalhos divulgados pela grande mídia? 

 Por sermos independentes sempre tivemos total liberdade de criação, nunca abrimos mão disso em nossas aparições na TV. A única vez que nos pediram para reduzir o tamanho da banda, e nós achamos que não era o caso, por ser um programa importante, nós fizemos nossas exigências e fomos cortados, aparentemente por isso.
Não vemos esse preconceito dos artistas independentes com a grande mídia quando, e isso é muito importante, o artista consegue aparecer sem precisar abrir mão de sua estética, sem precisar alterar a sua arte para se adaptar.
Esses artistas, incluindo a Trupe Chá de Boldo, conseguem fazer isso pois houve também uma inversão de valores, interessante de observar. Os independentes cresceram o bastante para galgar um certo espaço na mídia, enquanto, por conta da nova configuração do mercado, as gravadoras perderam força. O mercado da música é menos rentável, caindo ano a ano desde (..lá por..) 1999, sendo que os independentes já representam 20% deste mercado.
Isso começa a implicar inclusive em uma perda de espaço dos músicos na TV, por exemplo, genericamente falando. Quando éramos crianças, uma banda que estava na MTV e era primeiro lugar no Top10, para citar um caso, tinha uma projeção muito grande. Os rankings em geral eram mais valorizados. Hoje em dia esse alcance da TV é menor. Houve talvez uma migração entre mídias. E para uma muito mais direta e interativa. O artista (e a obra) é pouco a pouco menos distante, menos mitificado, o que é muito rico. E passa a ser possível ter público sem deixar de ter liberdade na produção.
Nesse sentido também tem coisa interessante acontecendo. Saiu no Estado da semana passada uma reportagem que listava uma série de palcos na cidade com a agenda montada para o segmento independente. São lugares catalisadores, velhos e novos, a Casa do Mancha, o Mundo Pensante, a Casa de Francisca, que tecem uma atividade musical muito rica em Sampa. Algumas iniciativas que pintam em espaços públicos, livres são demais (claro, é fundamental sempre dar uma olhada nas organizações envolvidas). Alguns meninos da Trupe abrem a casa mais ou menos uma vez por mês para fazer shows de vários artistas. Temos visto rolarem coisas assim, e a produção vai se afetando, claro, por estes encontros.


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• Qual o papel da Internet no reconhecimento de uma banda? 

A internet tornou-se um instrumento fundamental para a veiculação da obra das bandas independentes. Uma vez que disponibilizamos nossas músicas na rede, é como se elas ganhassem vida própria, espalhando-se de maneira assustadora. E o mais interessante é que não se limita à experiência musical. Os blogs e as redes sociais dão ao artista liberdade total de falar o que pensa e ainda por cima criar um diálogo direto com quem está do outro lado, seja da cidade ou do mundo. A distância entre o artista e o público diminuiu e isso é muito bom. Ninguém mais depende de rádio ou televisão. E nem de gravadora. A Trupe, assim como diversos outros, apoiou-se em uma plataforma do tipo crowdfunding (financiamento colaborativo) na internet para levantar dinheiro para a gravação do Nave Manha. Além da divulgação e da comunicação, a internet também nos permite observar muito melhor o alcance do nosso trabalho, e isso também nos ajuda a trilhar nossos próximos passos. E para além disso os shows ganham força, como a outra ponta da história, a (boa e velha!) experimentação ao vivo, o delicioso "estar ali", junto, que é certamente algo que nunca sai de moda, não é?


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