Marchinhas, confete e serpentina: o João desfila e capota pelas ruas de São Paulo

Proclamada como “túmulo do samba” por Vinicius de Moraes, São Paulo mostra que também sabe pular carnaval e quem comprova isso é o bloco João Capota na Alves, há mais de meia década pelas ruas de Pinheiros


Vinicius estava errado: São Paulo também sabe sambar
(Foto: Leandro Fonseca)

Mesmo quem não gosta do Carnaval está sujeito a ter algum tipo de contato com essa manifestação cultural, seja na transmissão do desfile de grandes escolas de sambas por emissoras de TV, seja topando com algum bloco carnavalesco em alguma rua da cidade. Ou seja: ser brasileiro e não ter qualquer tipo de contato com o carnaval é quase que impossível.

Os blocos de rua (ou o que inicialmente se pareciam com eles) passaram a existir no Brasil a partir do século XIX, como forma de reafirmação das manifestações culturais brasileiras. Já em 1889 os primeiros blocos carnavalescos foram registrados no Rio de Janeiro, sendo os pioneiros os blocos cariocas Grupo Carnavalesco São Cristóvão, Bumba meu Boi, Estrela da Mocidade, Recreio dos Inocentes, entre outros.

Os blocos de carnaval surgiram, em São Paulo, como uma espécie de inserção dos negros na comemoração tradicional, que, até pouco depois de 1910, era restrita a elite branca paulista. Bairros como o Glicério e a Bela Vista, cuja população era em sua maioria constituída por negros, foram palco das primeiras manifestações carnavalescas em São Paulo, manifestações, estas, que foram diversas vezes alvo da ação policial acionada pelos brancos, ainda inseridos no pensamento racista e escravista do início do século.

O bloco João Capota entra "nos anais dessa cidade"
(Foto: Leandro Fonseca)

Com a popularização dos blocos de rua, na década de 30, que já contavam com centenas de foliões, as características iniciais dessas manifestações sofreram alterações e se transformaram no que hoje se conhece por escolas de samba. Apesar disso, alguns grupos se manteram como blocos de rua e continuaram a desfilar pelas ruas da cidade de origem até os dias de hoje, como, por exemplo, os cariocas Banda de Ipanema e o Cordão do Bola Preta, e os pernambucanos Galo da Madrugada e Bacalhau do Batata.

São Paulo conta com cerca de mais de 20 blocos de rua que desfilam pela cidade anualmente, blocos com temáticas e histórias distintas, no qual misturam-se os mais antigos com os mais recentes. O mais antigo bloco paulista que se tem registrado é o dos Esfarrapados, fundado na década de 40 e que tem como berço o bairro do Bixiga. Além dele, blocos com menos tempo de existência, como o  Nóis Trupica Mais Não Cai e o Acadêmicos do Baixo Augusta, também alegram a cidade nos carnavais, democratizando a comemoração e fazendo com que ela não seja centralizada apenas por grandes escolas de samba que visam o lucro com a venda de fantasias e ingressos a preços elevados.  

Até boi foi pra sambar (Foto: Leandro Fonseca)
Um dos blocos com pouco tempo de existência, mas que se consolida como um dos principais de São Paulo, é o Bloco Carnavalesco João Capota na Alves, formado em 2008 por estudantes moradores da região de Pinheiros e que batizaram o grupo inspirado nas ruas do bairro: João Moura, Capote Valente e rua Alves Guimarães.

A concentração do bloco estava prevista para as 13h, no pontilhão da Sumaré, ao lado da estação de metrô. A partir desse horário, os primeiros sinais carnavalescos puderam ser notados. A bandeira em bordô do bloco João Capota enfeitava uma das muretas do viaduto, junto a panos coloridos que davam vida a uma Dr. Arnaldo melancólica e com poucos automóveis devido ao feriado. Um carro de som não-motorizado foi acompanhado pelas baterias e outros instrumentos musicais dos integrantes que, um a um, chegavam fantasiados e com samba no pé. Timidamente, os foliões chegavam e procuravam algum espaço livre pelas calçadas e muros. Muitos lotavam os bares e lanchonetes das redondezas, já iniciando a sessão alcóolica que se estenderia até o fim do desfile, e até depois dele. Famílias inteiras aguardavam a festividade. Pais e filhos em clima de carnaval.

O bloco esquentou os tambores e o gogó cantando o que seria o hino daquele ano: “O Capota me leva, meu bem/ No quesito amor, sou rei/ O João escorrega, no baile/ E viva a Gina, o João e a sacanagem!”. Para não desagradar os foliões “joanenses” que participaram da festa nos anos anteriores, marchinhas do João Capota dos anos de 2012 a 2008 também foram cantadas por centenas de pessoas que atiravam confetes umas nas outras e lançavam serpentinas a rodopiar no ar. Bexigas amarelas foram soltas no céu acinzentado e sumiram no emaranhado de nuvens pretas. Fogos de artifício pareceram anunciar o início da caminhada do bloco pelas ruas de Pinheiros, como um tiro que anuncia a largada de uma corrida. E assim foi.


O desrespeito pelas manifestações populares
(Foto: Leandro Fonseca)
O desfile seguiu sem maiores problemas pela extensa rua Oscar Freire, com seus moradores que acompanhavam o acontecimento da janela dos edifícios e condomínios. Alguns receberam a comemoração com cara ranzinza e um simples fechar de cortinas e janelas; outros, no entanto, abriram um largo sorriso e dançaram da sacada, acenaram e cantaram com a vontade de participar da folia. Mas, em um dos cruzamentos da Oscar Freire, os integrantes do bloco, que estavam à frente da multidão para organizar a passagem dos foliões, tiveram alguns problemas com os moradores da região. Em seus confortáveis carros de luxo, alguns moradores esbravejaram seus direitos em atravessar a aglomeração de pessoas, pois não queriam dar meia volta e perder mais tempo de suas vidas, talvez apressados para não perder algum programa de TV. Uma jovem de óculos desceu o vidro blindado e gritou para um dos organizadores: “Eu moro aqui em cima! Eu tenho o direito de passar por essa rua! Sai daí!”. E o bloco não saiu. Permaneceu intacto em sua alegria e em seu direito de ocupar as vias públicas da cidade. Insatisfeitos, os carros deram meia volta. Mas não todos. Um casal de senhores, provavelmente antigos e conservadores moradores de classe média alta de Pinheiros, ultrapassaram a multidão à base de buzinas, palavrões e má educação, onde viram-se no direito de passar por cima daquela manifestação popular cultural, mesmo não se importando que aquela prática poderia botar em risco a vida de muitos cidadãos e cidadãs.

O João capotou, mas não caiu. Por todo o trajeto realizado pelo bloco, via-se a alegria estampada em cada um dos rostos (pintados ou não) das pessoas que participavam da folia, que aconteceu sem maiores problemas ou confusões. Um homem vestido de Bela Adormecida, uma criança fantasiada de Boi Bumbá, um grupo de amigos fantasiados de personagens de Mad Max... Criatividade é algo que não faltou nas fantasias dos foliões joanenses. Também não faltou cerveja e outras bebidas alcóolicas, vendidas pelos ambulantes que carregavam suas caixas de isopor nas costas, gritando o preço dos produtos. Também não faltou respeito em relação aos casais homossexuais que não viram barreiras nas demonstrações públicas de afeto.

O bloco tirou nota 10 no quesito respeito e harmonia (Foto: Leandro Fonseca)
A já conhecida chuva pelos paulistanos marcou presença no desfile, fechando com chave de ouro - ou de água - mais um ano do João Capota na Alves. Capotando há mais de 5 anos, o bloco se firma como um dos principais da cidade, mesmo com o “pouco” tempo de existência, se comparado a outros blocos carnavalescos tradicionais. E na praça Benedito Calixto, ponto de término do desfile, todos os foliões puderam descansar o corpo e as mentes, completamente encharcados pela chuva que desabava sobre os prédios e as pessoas. E mais pesada do que as fantasias úmidas, a tomada de consciência de que todo carnaval tem seu fim.

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