A mão que apaga o cachimbo


Com medidas extremas para solucionar o "problema do crack", o Brasil consolida seu ineficaz sistema proibicionista que permanece imutável quanto a política de drogas


A ajuda não deveria vir fardada e em camburões
(Foto: Marco Antonio Cavalcanti)


Vivemos, hoje, numa sociedade que necessita ter para ser. Os dois verbos se interligam de forma sutil e, por vezes, se confundem. Esse processo é resultado, também, do avanço tecnológico que permitiu o “homem unidimensional” - definição criada por Herbert Marcuse - reconhecer a felicidade como matéria-prima do ato de consumir.  Para o filósofo alemão, “as criaturas se reconhecem em suas mercadorias; encontram sua alma em seu automóvel, hi-fi, casa em patamares, utensílios de cozinha. O próprio mecanismo que ata o indivíduo a sua sociedade mudou, e o controle social está ancorado nas novas necessidades que ela produziu”. Assim como Marcuse, Baudrillard reforça em seus estudos essa espécie de “felicidade material” que o homem contemporâneo aprendeu a acreditar e a projetá-la em bens de consumo.
O uso de substâncias psicoativas está presente desde o surgimento da humanidade, estando associado a diversos fatores, que vão da estrutura familiar e da educação até as condições sócio-culturais e econômicas em que o indivíduo está inserido. O mundo se transformou e, junto dele, o homem, complexa criatura que, diante deste mundo transformado, busca incessantemente maneiras de amenizar as dores da vida e a corresponder aos impasses do desejo numa sociedade a desaguar na infelicidade e num vazio resultantes da lógica industrial que, como observado por Marcuse, impulsiona o abuso no consumo e em sua naturalização. Fumar maconha, crack, cheirar cocaína ou usar qualquer outro tipo de substância, portanto, não deixa de ser um ato de consumo e pode estar intrinsicamente ligado às crises existenciais do homem moderno.
A cracolândia nômade e o proibicionismo imutável
(Foto: Isabela Casalotti) 
O crack é a forma impura da cocaína. Assim como em todas as outras drogas, lícitas ou não, há a possibilidade de se desenvolver uma dependência química e/ou psíquica. Sobre uma terrível “epidemia” de crack no Brasil, criou-se no imaginário popular uma ideia errônea e distorcida quanto a situação real dessa droga. Lançada como “a droga mais usada no Brasil” numa fogueira da Santa Inquisição, a mídia e os políticos - responsáveis pela mitificação do crack - esqueceram-se de que o álcool é o responsável pela maioria das mortes ocasionadas por substâncias psicoativas no país e acabaram por lançar entre as chamas não apenas o entorpecente, mas também o usuário. Demonizados, droga ilícita e usuário são alvos de medidas repressoras por parte do Estado, seja em “enquadros” truculentos por parte de policiais militares, seja na apreensão de quilos e mais quilos de drogas em bocas de fumo. Nenhuma das duas medidas, sabe-se bem, solucionam “o problema das drogas” de forma efetiva. Muito pelo contrário. As abordagens policiais não surtem efeito, pois usuários continuarão a fumar seus cachimbos ou baseados, assim como a prisão de traficantes é paliativa, pois não extingue a existência das drogas e apenas serve de manutenção para a superlotação em penitenciárias, além da já conhecida guerra entre a polícia e o tráfico que assassina mães, pais e filhos todos os dias no Brasil.
Também produto de uma política repressora, a internação compulsória foi a “solução” que o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, achou para a situação dos usuários de crack. O recolhimento de alguns desses indivíduos foi realizado pelas equipes das secretarias de Assistência Social e de Saúde, mas, por via das dúvidas, com o auxílio de policiais devidamente treinados no manejo de armas de choque (“caso seja necessário”) entregues pela Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, a Senasp/MJ. Não o bastante, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, se inspirou nas ações de Paes e, junto ao Tribunal de Justiça de SP, o Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil, compactuou com a internação involuntária dos “viciados”.  











Nessa sociedade que, sob a ótica de Marcuse e Baudrillard, ter é mais importante do que ser, pré-conceitos e segregação são quase que consequências. Diante de um mundo imediatista que exige de nós a busca pela felicidade em bens de consumo e a padronização estética inspirada em feições importadas, numa sociedade em que dar-se o direito de se entristecer é um pecado gravíssimo, viver e ser feliz é quase utópico se não for dentro do último carro do ano e, de preferência, trajando roupas e tênis de grife. Não há tempo e muito menos necessidade de se entender o próximo e, principalmente, entender o próximo dentro de sua complexidade como ser humano. Por isso, é de extrema facilidade - e comodidade - julgar qualquer tipo de usuário de drogas pela sua dependência e, em muitos casos, pela sua situação de vida. Em entrevista cedida ao portal Terra, Luciana Boiteux, coordenadora do Grupo de Pesquisas em Política de Drogas e Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que, em relação a usuários de crack e em situação de rua,Precisa saber o que levou a pessoa para lá, suas angústias, o uso da droga como fuga para problemas familiares. Muitos deles são portadores também de problemas mentais”. Não sendo percebida a dependência como resultado de variantes muito complexas, jogar a droga e o usuário na fogueira da Santa Inquisição se torna mais cômodo do que tentar entender e, se possível, atender quem precisa de ajuda.  E a ajuda, nestes casos, não pode vir fardada em camburões, muito menos travestida de assistente social que corre atrás dos “nóias” como se estivesse à caça de um bicho. Apesar de prevista na Constituição (lei federal 10.216/2001), a internação compulsória que Paes e Alckmin promoveram no Rio e São Paulo, respectivamente, ultrapassa o que está em previsto em lei, pois “a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”.
Operação no Rio foi mais um exemplo da ineficácia da política proibicionista
(Foto: Adriana Lorete)
Desespero por parte dos políticos carioca e paulista em não saber lidar de outra forma com a situação do crack nas regiões administradas ou higienização social? A última alternativa parece plausível (apesar da secretária estadual de Justiça e Cidadania, Eloisa de Sousa Arruda, ter negado tal política higienista) dentro da situação atual em que o Brasil caminha, às vésperas de dois importantes eventos mundiais: Olimpíadas e Copa do Mundo. Eventos que movem bilhões e bilhões em dinheiro. Eventos que darão mais visibilidade a um Brasil que já se destaca entre outros países do mundo e que, claro, pessoas fumando “pedra” não cairiam bem a olhos estrangeiros. A questão é que políticos se mobilizaram para pôr em prática essas medidas que, se comparadas a outras prioridades no país, levam a um questionamento levantado pela Gabriela Moncau e pelo Júlio Delmanto, ambos integrantes do Coletivo Desentorpecendo a Razão (DAR) e da Frente Nacional Drogas e Direitos Humanos, em publicação na revista Brasil de Fato. “Se não houvesse crack estariam resolvidos os problemas da população vulnerável de São Paulo? A utopia da guerra às drogas, que prega o desaparecimento de algumas substâncias enquanto se esbalda no dinheiro de álcool, tabaco e remédios, resolve a demanda urgente por moradia, trabalho, educação, saúde ou serve somente para desviar a atenção dos verdadeiros problemas?”.
Utilizada para mascarar outros problemas sociais e um dos sintomas do sistema proibicionista, a internação compulsória surge para questionar, além de outras perguntas cabíveis, até onde vai o livre arbítrio de nós, relés seres humanos, em nossa sociedade vigiada e punida pelo todo-poderoso-Estado, cuja hipocrisia permite legalmente homens e mulheres se drogarem com a mais deliciosa das cervejas ou com calmantes para dormir, mas reprime e julga usuários de quaisquer drogas ilícitas. Dartiu Xavier, professor da UNIFESP e diretor do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (PROAD), aponta que "a dependência de drogas não se resolve por decreto. As medidas totalitárias promovem um alívio passageiro, como um 'barato' que entorpece a realidade". Sendo assim, que haja, então, uma desintoxicação do nosso Governo.

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