Lá em cima



Noite quente, todo mundo na rua. Os meninos sem camisa cortavam a rua com suas motos barulhentas. Ronco de motor e um funk infernal. Muita conversa, muita risada. As meninas de saia curta faziam rodinha bebericando uma vodca com energético. Cheiro de maconha impregnado no ar. Uma senhora estendia as roupas no varal e reclamava da rotineira bagunça. Eu estava em frente à casa dessa senhora quando meu celular tocou. Oi, tudo bem e você?, ah tá bom já estou subindo, logo chego aí, falou. 
Sei quando estou chegando lá em cima quando olho para baixo e vejo o fim do asfalto e o início do chão de terra. Chegava-se ao barraco onde o pessoal ficava depois de passar pelo córrego. Me equilibrei num pedaço de madeira que servia de ponte e atravessei. Lá de longe já tinham me visto. Abaixaram as metralhadoras e me desejaram boa noite. 
Entrei por um corredor estreito. Subi a escada e topei com mais dois caras com arma. Estranhei aquela movimentação que não era habitual. Deram-me passagem depois de um boa-noite. 
Ele estava lá de pé, olhando o morro como quem olha um álbum de retratos. Observava a escuridão da noite que engolia tudo e as luzinhas das casas que persistiam em brilhar. Me fitou com olhos tristes e deu um trago no cigarro. Beijei sua boca e senti cheiro de cerveja. Notei que estava bêbado e, definitivamente, as coisas ali estavam estranhas. 
Começou a dizer que estava pra morrer. Disse que a morte estava chegando. Estava perto. Falava como se a morte estivesse o perseguindo. Mas você vai morrer por que?, Eu vou morrer, e eu preciso que você saiba disso, Não, você não vai morrer, cala a boca que..., Cala a boca você, eu vou morrer, e eu queria te ver antes que isso acontecesse. 
Me beijou. Beijou e beijou e beijou. Passou a mão por entre minhas pernas, acariciou os meus cabelos e cheirou minha nuca, pousou o rosto no meu ombro e se pôs a chorar. Me abraçou com força, como se o mundo fosse acabar ali, naquele instante. Soluçava como criança pequena e nada do que eu dizia melhorava a situação. 
Olha aqui, disse ele segurando minha cabeça, me engolindo toda a cara com aquele par de olhos úmidos, e então eu o olhei, olhei mais do que aquelas íris escuras, olhei para dentro dele e vi um turbilhão de coisas tristes. Foi naquele instante que senti a morte, a morte que ia tirá-lo de mim. 
Ele me mandou voltar para casa. Mandou não sair de lá. Eu queria ficar, mais do que pedir, implorei para ficar. Me levou até  a escada e me abraçou. Disse que me amava e que me mataria se soubesse que tinha outro alguém no coração. Desci todos os degraus daquela escada sentindo cada um deles como uma facada nas costas. Não sei se era amor demais, não sei se era raiva, não sei o que era. 
Acordei com o rebuliço na vizinhança. Viaturas subiam a rua da minha casa e levantavam pedrinhas do chão de terra, lá em cima. Os homens de cinza tinham furado o coração dele. Tinham furado as mãos dele, as pernas, as panturrilhas, a barriga, tinham cavado um túmulo no peito dele. Tinham me matado um pouquinho, também. 

Um comentário:

Karina Mendes Brandão disse...

Arrepiou minha espinha. Muito foda!