Mulheres: muito além do fogão e da cozinha |
A condição da
mulher na sociedade sofreu relevantes transformações durante toda a história da
humanidade, mas ainda não mudou o suficiente para nos vermos livres do machismo.
Sob a ótica cristã, o mundo criado por Deus teve sua primeira figura feminina
nascida das costelas de um homem, sendo ela, então, intrinsecamente dependente
da existência masculina. Em O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir disserta,
também, sobre a capacidade da cultura histórica em edificar a figura do homem-herói
e exaltar os aspectos mais pejorativos possíveis da mulher. Não por acaso Eva
foi (e continua sendo) tomada de inferioridade por ter partilhado com Adão o
fruto que Deus não quis que eles comessem.
A esposa de
Sartre foi ainda mais longe: mostrou o quanto as mulheres são educadas, desde
pequenas, a servirem ao homem, aos filhos e ao lar, educadas a manejar e cuidar
de bonecas, como um prelúdio do zelo pelo futuro rebento, ou educadas a
brincarem de cozinhar, preparadas desde cedo para servirem ao marido. Durante
muito tempo foi inconcebível a ideia de uma mulher não ser nada mais do que uma
dona de casa, sujeita, apenas, aos afazeres domésticos.
Igreja: plantando valores e morais |
Para Ana Pagamunici,
da Secretaria Nacional de Mulheres do PSTU, o machismo é uma forma de opressão,
assim como o racismo também o é,
sendo um de seus “sintomas” a desproporção no salário ganhado por mulheres se
comparado com as de um homem, mesmo que partilhando do mesmo cargo, das mesmas
funções. Além de ser uma forma de opressão, o machismo não deixa de ser uma
ideologia “transmitida pela escola, pelas famílias, pelas igrejas, pelos meios
de comunicação e por todas as instituições que reproduzem o sistema
capitalista. De tanto ser reafirmada passa a ser natural, comum, imutável”. Essa
ideologia passou a ser tão reafirmada que, não obstante em parecer natural,
passou a transformar homens em monstros: a pesquisa Ibope apresenta o machismo
(46%) e o alcoolismo (31%) como principais fatores que contribuem para a
violência.
Esse mesmo machismo que espanca uma mulher a cada 15 segundos no Brasil e que
já contribuiu com mais de 90 mil mortes durante a década de 80 ao ano de 2010.
Tendo ciência
do machismo como algo lesivo para a sociedade, é incoerente pensar que ele
seja, ainda, disseminado através de muitos canais. Como foi citado por
Pagamunici, a família é um dos meios no qual o machismo é transmitido, assim
como a religião, sendo esta última objeto de enfoque do presente texto. As
igrejas são mantedoras de morais e valores e detêm de um gigantesco poder na
formação de opinião - processo semelhante ocorre com a mídia e os grandes
veículos comunicacionais. Assim sendo, um evento religioso de considerável
porte, ocorrido há alguns meses atrás em Belo Horizonte, MG, pôs em prática a
propagação do machismo e, o mais impressionante (ou não), é que as pessoas que
discursaram tendo como base essa ideologia eram mulheres.
Valadão: no passinho do machismo |
Foi realizado
o 2º Congresso Mulheres Diante do Trono nos dias 23, 24 e 25 de agosto deste
ano e apoiado pela editora gospel Mundo Cristão. O evento teve como tema “Mulher
Virtuosa” e reuniu 6 mil pessoas,
tendo como intuito “(...) que cada irmã possa vir com o coração ensinável e
que, ao final do congresso, todas possam sair transformadas, restauradas,
reluzentes, cheias do Espírito e ainda mais desejosas da presença de Deus”.
Sem sombras de dúvida, a organização do congresso desejava que todas aquelas
seis mil fiéis saíssem transformadas, modificadas através de seus espinhosos sofismas.
O 2º Congresso
Mulheres Diante do Trono teve como “preletoras” Ana Paula Valadão Bessa,
cantora gospel e líder do Ministério de Louvor Diante do Trono; Devi Titus, presidente
da Rede Mundial de Esposas de Pastores; e Helena Tannure, apresentadora de TV, invejosa assumida e defensora de músicas e dancinhas na igreja.
A tríade de demagogas intermediava o bate papo com outras convidadas,
discutindo o papel da mulher cristã dentro do lar e se utilizando de um
discurso retrógrado para sustentar a “importância” da submissão da mulher
perante seu marido. Entende-se que essa submissão vai muito além da família e
auxilia esse machismo camuflado de bons sentimentos a tomar proporções sociais,
fazendo-me refletir novamente sobre o pensamento de Simone de Beauvoir acerca da
figura feminina tão somente como objeto de manutenção doméstica e familiar. Para
sustentar ainda mais essa ideologia opressora, uma das convidadas, pastora
Ângela, passou a criticar a independência da mulher, essa mesma independência
ainda opaca, conquistada com esforço e resultado de muitos protestos e sutiãs
queimados. A pastora teve a ousadia de pôr os estudos e a formação acadêmica
das jovens em último plano, bem como o sucesso na vida profissional, alegando
que “a menina estuda, é excelente, mas não sabe cozinhar, não sabe pregar um
botão numa camisa, não sabe passar uma camisa, não sabe organizar, nunca
arrumou uma cozinha. Então, ela não está sendo preparada para o lar. Ela está
sendo preparada para competir com o homem no mercado” [transcrito do vídeo].
Esta mesma
mulher que está se preparando para competir de igual para igual com o homem
numa sociedade moralista e patriarcal nunca se permitirá ser submissa dentro do
lar ou fora dele, ou pelo menos é isso que se espera. Para a pastora Ângela,
essa mulher é fruto de uma “educação mal direcionada”, pois o essencial na
educação parece ser “preparar nossas meninas pro casamento”. A pastora, as
preletoras e as demais convidadas para o congresso compactuam com a submissão e
a supremacia do modelo patriarcal. Ângela admite ser a submissão algo complexo:
“Então eu vejo que a submissão é um princípio que abrange algo muito mais
profundo, muito mais maravilhoso, e as consequências, elas são muito fortes,
pra acertar tudo isso... é muito forte”.
A
consequência, e muito “forte”, dessa submissão é a permanência da ideologia
machista que, como muito se viu, ceifou inúmeras vidas. O machismo é deveras
mortífero, e para exemplificar isso, o projeto “Machismo Mata” foi criado com intento de divulgar regularmente links de notícias sobre
assassinatos de mulheres e uma lista grande e em ordem alfabética com o nome de
cada uma delas. Marias, Betânias, Catarinas, Cecílias, Cleonices, Cristianes, Glórias,
Fátimas, Elenas e Elianes... A lista parece não ter fim.
Reacionário e
machista, o 2º Congresso Mulheres Diante do Trono pareceu condescender com um
retrocesso na igualdade entre os sexos e na formação de uma cidadania plena. E
para quem acredita que essas líderes religiosas não interferem na consolidação
de uma democracia se utilizando de demagogia, Matheus Pichonelli ressalta: “O
reacionário, no fim, não é patrimônio nacional: é um cidadão do mundo. Seu nome
é legião porque são muitos. Pode até ser fraco e viver com medo de tudo. Mas
nunca foi inofensivo”.
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