Todo dia é morte de índio

O desejo pelo lucro e a busca incessável pela obtenção de bens por parte de fazendeiros resultam na extinção da pluralidade cultural da tribo Guarani-Kaiowá no estado no Mato Grosso do Sul

Por Leandro Fonseca e Nicole Patrício

(Wilson Dias/ABr) 


“Todo dia, toda hora, era dia de índio”. Essa foi a mensagem cantada por Jorge Ben Jor, em 1981. Como um contador de histórias, daqueles que reúne a criançada numa grande roda, Ben Jor chamou curumins, cunhatãs e curiosos para que ouvissem como os “reais donos felizes da terra do pau-brasil” viviam.
E ele estava certo. “Antes que os homens aqui pisassem”, os índios não eram expulsos de suas terras, muito menos a ponto de que decretassem morte coletiva para salvar seu espaço, suas tradições e seus direitos. Em setembro deste ano, 170 indígenas da tribo Guarani-Kaiowá foram ameaçados de despejo do local onde habitavam: uma propriedade de 700 hectares no município de Iguatemi, sul do Mato Grosso do Sul. A estadia das comunidades Pyelito Kue/Mbarakay foi considerada ilegal pela Justiça Federal e os “pele vermelha” enviaram uma carta ao governo brasileiro. “Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para  jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos.” 
A carta surge como o prenúncio de mortes que poderiam ser evitadas caso a ganância não imperasse a mente de muitos fazendeiros que, sedentos pela geração de capital, contratam pistoleiros para expulsar de forma violenta os índios que, por ordem natural, detêm direito pleno em permanecerem em suas terras. Essa situação se assemelha, e muito, com o que os nossos livros de História nos ensinaram na época do colégio. A terra do pau-brasil serviu de palco para as mais diversas atrocidades promovidas pelos luso-colonizadores, também preocupados mais com a riqueza do que com o direito de liberdade e à vida dos “reais donos felizes” cantados por Ben Jor.  O Brasil perdeu durante séculos muito mais do que suas riquezas naturais nessa “descoberta” feita pelos portugueses.
(Divulgação)
Descobrir: o Aurélio emprega alguns significados para este verbo, desde “deixar ver, mostrar” até “encontrar, achar”. Em nossa tenra infância, nossos professores de História falaram do descobrimento do nosso país pelos portugueses, há mais de 500 anos atrás, e nos ensinaram sobre as caravelas e os jesuítas que evangelizaram os índios, os primeiros habitantes destas terras tupiniquins.
            Entretanto, se os índios por aqui já viviam muito antes dos europeus chegarem, não podemos, então, denominar esse fato histórico como um “descobrimento”. Um terrível engano disseminado durante séculos através de uma educação eurocentrista, que dá a impressão de um Brasil que não existia antes dos colonizadores desembarcarem. A ausência da valorização da cultura indígena promoveu – e continua a promover até nos dias atuais – a desumanização dos índios e uma figuração desses indivíduos como elementos antissociais, no qual não pertencem ou não cabem dentro de nossa sociedade.
Os Guarani-Kaiowá lutam desde a década de 80 – mesma época em que Jorge Ben gravou essa sua composição – com o agronegócio pela ocupação das terras em todo estado do Mato Grosso do Sul, local onde os mais de 45 mil índios desta tribo estão espalhados. Uma luta que dizima toda uma população não somente pela força dos projéteis de uma arma ou pela aguçada lâmina de facões. Estamos falando da morte da vontade de viver, da morte da felicidade desses índios que se entregam ao suicídio diante da tristeza de se verem sem lugar algum para poderem viver. Este fato, apesar de ter sido divulgado neste ano pelo Ministério da Saúde e comprovado em dados estatísticos, parece ter pouco impressionado o governo, já que a demarcação das áreas para essas famílias indígenas soa como um sonho burocrático que provavelmente demorará a se concretizar.
 Passado mais de 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil e o mesmo desejo português parece dominar proprietários de grandes pedaços de terra quando se utilizam da violência e do assassínio para conquistarem alguns números a mais na conta bancária.
Assim sendo, a tribo Guarani-Kaiowá sofre neste momento um processo de colonização capitalista e anti-humanitária, cujos colonos não vieram de continente europeu: são frutos da mesma terra disputada. O possível suicídio coletivo anunciado em carta pela tribo nada mais é do que efeito da desvalorização do povo indígena como cidadãos e, acima de tudo, como seres humanos. É essa mesma desvalorização que Jorge Ben Jor expõe quando canta que “agora eles só têm um dia, o dia dezenove de abril”. Reduzida a um único dia comemorativo no ano, a comunidade indígena ainda passa despercebida aos olhos de nós, “civilizados”, pagadores de IPTU, IPVA e outras parafernálias tributárias.
Se for realmente consumada a morte coletiva dessas famílias Guarani-Kaiowá, podemos então, dizer, que a democracia também morreu.







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