Falando de cinema: "Fúria de Titãs", de Louis Leterrier

Há muito tempo não se via no cenário hollywoodiano alguma adaptação de histórias da mitologia grega. O cinema se voltou para livros e quadrinhos, nestes últimos tempos, para dar vida à personagens e histórias que, até mesmo, eram desconhecidas do público. Watchmen é um exemplo: história em quadrinhos escrita por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons, lançada na década de 80 nos Estados Unidos, foi adaptada para o cinema e dirigida por Zack Snyder, e chegou a terras brasileiras em 2009. Mas o caso é que o fantástico mundo das lendas gregas veio perdendo seu brilho, e já estava mais do que na hora de capricharem em um filme sobre o assunto.
O francês Louis Leterrier, diretor dos filmes Carga Explosiva I e II e do horrendo O Incrível Hulk (lançado em 2008, no qual Louis conseguiu distorcer tanto a história que Bruce Banner aprendeu a lutar com os capoeiristas da favela da Rocinha), ganha destaque ao lançar seu mais novo filme, Clash of Titans, ou para os brasileiros, Fúria de Titãs. O remake do filme que leva o mesmo título, lançado em 1981, com efeitos especiais em stop motion de altíssima qualidade e tecnologia para época, foi dirigido por Stephen Norrington, o mesmo cara que botou nas mãos de Leterrier o roteiro do Fúria. Um erro? Eu diria que nem tanto.
Uma das poucas coisas que o diretor foi feliz na realização do filme: a escolha dos atores. Ralph Fiennes, artista que venho admirando desde “O Jardineiro Fiel” foi escalado no elenco para interpretar um dos meus personagens prediletos do mito de Perseu, o deus do submundo Hades. Sam Worthington (novo queridinho de Hollywood, protagonizou Avatar e O Exterminador do Futuro) não tem apenas um corpo e rosto bonitos. Ele mostra muito mais do que o físico no filme. Sua atuação, apesar de não ser magistral, é digna de aplausos, principalmente para um ator em ascensão como ele. A outra parte do elenco, não tão conhecida assim como Mads Mikkelsen e Alexa Davalos (entre outros) ficou a desejar não tanto por má atuação ou coisa do gênero, foi o próprio diretor que não soube desenvolver as personagens dos atores. Pareciam atuar em qualquer outro filme que não fosse um sobre deuses e humanos. Tanto que muito das pessoas que aparecem durante o longa ficam mudos, como vasos apenas enfeitando o cenário, às vezes sem necessidade. Por exemplo, os deuses. Atenas, Afrodite, Hera, Hermes, Dionísio foram brutalmente descartados do filme. Durante uma cena, em que Zeus fica puto da vida com os humanos devido à rebeldia deles, aparece um círculo de deuses vestidos de Cavaleiros do Zodíaco (eu explico este detalhe mais para frente), apenas Apolo profere uma única frase sem muito interesse, apenas para dizer “Oi, público, eu estou aqui!” e pronto. Nada mais.
O que Leterrier quis e conseguiu foi arrancar um pouco do romantismo existente no primeiro filme e substituí-lo por algo mais “sério”. Em Fúria de Titãs da década de 80, Perseu quer foder Deus e o mundo pelo amor de Andrômeda. No remake, a donzela Andrômeda, caridosa e distribuidora de pães aos pobres, não passa de uma mera conseqüência e Perseu, no longa, parece ser um homem muito mais frio, movido apenas por querer vingar-se dos deuses, especialmente Hades que acabou matando seus pais de criação afogados. O diretor francês deu outra cara ao mundo antigo, também. Criou personagens novos, repaginou a estética dos deuses, humanos e monstros. Sobre o figurino, indiscutivelmente pensei se tratar aquele filme sobre o mangá Cavaleiros do Zodíaco (vide a comparação abaixo), e a semelhança era tanta que o próprio diretor, em uma entrevista, abaixou a poeira dizendo que sim, a semelhança entre o desenho japonês e seu filme era proposital por ser grande fã da saga do galã Seiya, Shiryu, Hyoga, a bichona Shun e o bipolar Ikki de Fênix. Tanto que o criador Masami Kurumada participou da produção do Fúria de Titãs, por pedido do próprio Louis. Isso é que é ser fã, hein!


Segundo a Wikipédia, “Perseu é fruto da união forçada entre a esposa de Acrísio e Zeus, portanto é um semideus. Acrísio, envergonhado com sua desonra, assassina sua esposa e a coloca em um caixão com seu filho vivo e o joga no mar. Por isto, Zeus o transforma em um homem besta. Um homem encontra o caixão, e o menino vivo junto com o cadáver de sua mãe, e esse homem o adota junto a sua família”, e essa é parte inicial da história, no qual Perseu é movido pela vingança e blábláblá e quer matar Hades (mas Hades não pode ser morto por, justamente, ser um deus e deuses não morrem, que pena!). O restante da história resume-se ao povo de Argos que encontrara Perseu após a morte de sua família, leva-o para o Rei que debocha dos deuses e sua esposa Cassiopéia diz que sua filha Andrômeda é mais bela do que Afrodite (esse é motivo real, na lenda grega, que motiva os deuses a acorrentar Andrômeda e oferecê-la como sacrifício) e Hades aparece e faz com que a filha de Cassiopéia seja servida como jantar do Kraken, por representar a desobediência dos homens perante o poder dos deuses do Olimpo. E aí o exército de Argos vai atrás das bruxas que habitam uma alta montanha para saber como é que se mata o Kraken. Pausa aqui: Louis Leterrier é realmente assaltante de ideias? Parece, pois o trio de bruxas sem olhos, para poder ver quem se aproxima de seu habitat, se utilizam de um olho, um único olho que fica preso na palma da mão da bruxa-mestre. Del Toro usou este mesmo artifício em seu filme “O Labirinto do Fauno” (vide figura acima), quando a menina desperta o monstro ao tocar no banquete luxuoso à sua frente. Os olhos, colocados em um prato, são cravados nas palmas das mãos da criatura que deseja capturar a menina. Leterrier admira também Del Toro?

Estou deixando as pessoas que não assistiram ao filme bastante confusas, creio. Para sanar os pontos de interrogações, aconselho a lerem algo a mais sobre a história de Perseu e analisarem a diferença com algum release do filme. Sim, há uma brusca mudança, tanto na história, quanto o psicológico dos personagens e o seu verdadeiro fundamento. Stephen Norrington adaptou uma história da mitologia grega para fazer seu filme, e Louis Leterrier fez outra adaptação de um filme já adaptado. Genuinidade é algo que não pode ser esperado do longa de 2010, portanto. Não há escorpiões gigantes, cavaleiros do deserto com pele de casco de madeira, diabinhos que saem voando das asas de Hades, uma medusa sem pernas que rasteja por escombros de um mundo subterrâneo e que lança flechas e muito menos um Pégaso negro e até mesmo um Kraken, já que este monstro não existe na mitologia grega e, sim, meus caros, é um ser das lendas escandinavas, inicialmente um cefalópode gigantesco que atacava os navios. A história mitológica, em si, não carrega tantos momentos envolventes de ação, tanto que seu intuito não é deixar as pessoas doidas de expectativa para saber o final da história, e sim, possui um espírito muito mais humano e filosófico do qualquer outra coisa. Uma adaptação teria de ser feita, sim, se Leterrier quisesse continuar dando prosseguimento à sua linha cinematográfica de filmes de ação.
Já era esperado graves mudanças, e foi isso que me preocupou, e é isso que faz do filme não ser assim tão brilhante como deveria ser. Na verdade, adaptar um filme não é mudá-lo por completo e sim saber administrar as alterações pertinentes da nova obra e saber usar estas mudanças para deixar à mostra os gostos, ideias e características do diretor. O que aconteceu em Fúria de Titãs foi uma adaptação brusca, mas que não chega a mudar por completo todo o enredo, mas faz com que as pessoas se detenham mais à coisas sem muita importância como as batalhas, o sangue, os gritos e explosões, elementos típicos de um filme de ação. O que deveria ser realmente notado é de como o personagem Perseu é uma representação de uma exclusão social (seu próprio pai tenta o matar lançando-lhe ao mar, ou seja, descartando-o de toda a família, porta para a sociedade), e de como a falta dos pais faz com que sua revolta cresça tanto que chega a quebrar suas próprias crenças. Segundo Alexandre Quinta Nova Teixeira do site “Portal da Psique”, “quando Perseu decapita Medusa, ele destroi a imagem de sua mãe negativa. Medusa simboliza a mãe que paralisa o filho não possibilitando que ele se desenvolva. Enquanto que Dânae simboliza a mãe positiva que é pura. Com isto um dos aspectos do herói representa a necessidade de se afastar do seu herói. Isto só será possível quando Perseu vence a Medusa, decapitando assim a sua imagem de mãe negativa”.
Este filme pode ser um motivo à mais para que as pessoas tenham um interesse maior pela mitologia, pela leitura de histórias e sites que tratem sobre o assunto. Pode ser aí um motivo à mais para que outros diretores dêem mais valor à todo o brilhantismo da cultura grega, e que possamos, com ela, aprender alguma coisa. Mas, para aprender, é preciso enxergar, e se atrás de explosões e criaturas bizarras houver a verdadeira essência da coisa, vai ser difícil enxergá-la e colocá-la em prática.

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