Já não me lembro da última vez que sonhei



“Já não me lembro da última vez que sonhei”.

E assim disse Carlinhos, soltando a fumaça do cigarro em direção à janela. Ele era todo opaco. Os olhos castanhos não tinham brilho, bem como seus desgrenhados cabelos pretos, sempre presos em um coque desleixado abaixo da nuca. Os lábios eram finos e pálidos. A vida só lhe aparecia, vez ou outra, em frases reflexivas e um tanto melancólicas. E por serem reflexivas e melancólicas, eram vivas.

Carlinhos era mirrado, frágil, mas de alma turbulenta. Aos quinze anos disse que queria morrer. Aos dezoito lançou-se em direção a uma avenida abarrotada de carros. Aos vinte e dois caiu deliberadamente em uma piscina funda na casa dos primos, mas foi resgatado a tempo, pois nunca soube nadar. Aos vinte e nove começou a ter tédio da vida. Aos trinta e um perdera todo o brilho do corpo e do espírito. Aos trinta e sete comprou uma Canon e resolveu fotografar.

[Abre parêntese]

Eu tenho algumas inspirações. Referências, epifanias cotidianas e dores maltratadas, são parte de mim enquanto ser humano e pseudo-escritor. Comecei a escrever esse conto em uma tarde entendiante, me recuperando de uma infecção urinária. A personagem Carlinhos é um pouco de mim, mas não eu por completo. Geralmente as personagens que habitam minha literatura surgem de mim próprio. Agarro-me a uma característica pessoal, física ou mental, e utilizo-a como ponto de partida, porque só posso falar verdadeiramente de algo, se for de mim mesmo. E como tudo que escrevo, não tem um fim específico.

[Fecha parêntese]

Sob o peitoril da janela, Carlinhos apoiou os cotovelos e, com a máquina fotográfica em mãos, mirou a rua. Morava no décimo primeiro andar de um prédio no Centro e, de lá, o mundo parecia mais frágil do que realmente era. De lá, as pessoas eram tão pequenas que se tornavam apenas pessoas: não existiam homens, mulheres, adultos ou crianças. Eram apenas pessoas e isso lhe bastava.

Com o cigarro no canto esquerdo da boca, aproximou um dos olhos da máquina. Zoom. Alguém arrastava pela rua um saco de lixo. Mais zoom. Esse alguém era uma mulher. Mais zoom. Estava de chinelos e parecia com pressa. Clique. Apontou a lente para outro transeunte. Um homem de chapéu panamá folheava uma revista, parado em uma banca de jornal. Clique. A lente novamente se moveu, agora apontando para um polícia que coçava o saco. Clique. Agora um cão preto aproximou-se do saco de lixo depositado pela mulher apressada de chinelos e começou a farejá-lo. Outro clique.

Carlinhos apontava a lente da câmera como um atirador profissional que se esconde no alto de um edifício para matar o presidente. Sentia-se bem a cada clique. Era como se pudesse, pela primeira vez na vida, ter domínio sobre alguma coisa.

A lente novamente foi mirada em uma pessoa sentada na calçada. Focou a imagem aos poucos e encontrou um homem – ou seria uma mulher? Ou qualquer coisa entre gêneros, mas afinal de contas, para quê serve o gênero, senhores? – de cabelos pretos e compridos. O ser humano tinha a face ocultada. Foi então que o ser humano lentamente ergueu a cabeça e, como se tivesse dado conta de que estava sendo vigiado, olhou em direção ao céu. Parecia não querer encontrar Deus – ou deus? – ou alguma nuvem que denunciasse tempestade.

Carlinhos, então, viu que o homem era ele próprio.

Os cabelos em desalinho, a pálida pele de quem raramente sai à rua, a opacidade de quem não quer mais nenhum compromisso com a vida: era ele próprio ali, sentado na calçada, esperando sabe-se lá o quê ou quem.

[Abre parêntese]

Enquanto escrevia esses últimos parágrafos, fui me perguntando: por que inseri um fotógrafo na história? Alguns minutos atrás eu comecei a pesquisar no Google as obras fotográficas de Alair Gomes, o que muito me encantou. Não simplesmente pelo fato de eu ser bicha, mas pelo fato de encontrar naqueles corpos masculinos e seminus, uma poética que eu desejo ardentemente que exista em meus escritos. Cheguei a escrever no Facebook: “quero escrever da mesma forma que o Alair Gomes fotografa”. Tenho inveja dos mestres.

Cavuquei-me mais profundamente e encontrei outras respostas. Iniciei, semanas atrás, um curso na PUC chamado “Estéticas das Mídias”, do qual me dei conta de que não tenho condições de levar adiante, e por isso vou cancelar minha matrícula. Começamos estudando fotografia, o que muito me agradou, mas a dinâmica da minha rotina me impede que eu me dedique a projetos que necessitem de uma atenção especial, como era o caso desse curso. A personagem Carlinhos, então, é o prenúncio de dois lutos: o de nunca ser um Alair Gomes, nem na fotografia, nem na literatura; e o luto de um curso que não tenho forças para continuar.

[Fecha parêntese]

Foto: Alair Gomes

O homem-Carlinhos, ou o Carlinhos-estranho-e-transeunte, olhava para cima com a convicção do encontro. Carlinhos-Carlinhos, ou o Carlinhos-verdadeiramente-e-não-cópia, não conseguia esboçar nenhuma reação. Perplexo, admirava-se pela lente da câmera que, mesmo no zoom extremo, não conseguia captar os detalhes mais humanos daquele semblante estranhamente familiar.

O Carlinhos-de-baixo ergueu-se da calçada e limpou um pouco a calça jeans. Carlinhos-do-alto, do alto de seu apartamento e sua perplexidade, sentia o coração bater cada vez mais rápido. Livrou-se da câmera feito alguém que se livra do apertado par de sapatos ao findar do dia, e viu aquele pequeno ponto humano atravessar lentamente a rua.

Não teve dúvidas. Calçou as sandálias, apanhou o isqueiro e o maço de cigarros e saiu em disparada apartamento afora. Por sorte o elevador estava parado em seu andar. Entrou, alvoroçado, não se importando em cumprimentar a vizinha que, abraçada a um saco de batatas, fitava-o de forma assustada. Foi então que Carlinhos olhou-se no espelho do elevador e deu-se conta de que estava de pijama. Os cabelos pareciam mais bagunçados do que de costume. Os lábios tremiam. Térreo. Desceu, apertando o maço de cigarros contra o peito.

Não ouviu o porteiro, que lhe dissera que uma carta havia chegado. Sentiu uma lufada de ar espatifar sua cabeleira e desmanchar seu coque frouxo. Olhou para os lados, mas não encontrou o outro Carlinhos. O cão ainda farejava o saco de lixos. O polícia ainda estava parado na esquina, imponente, homem e defensor da pátria branca e branda. A banca de jornal continuava a vender manchetes escrotas e capas de revistas com pessoas escrotas. Mas ele próprio não estava lá.

Enquanto atravessava a rua, ia prendendo os cabelos em um coque apertado, que era para o não lhe atrapalhar as vistas. Foi então que, além das palmeiras entediadas, lá estava o Carlinhos-outro, caminhando tranquilamente em direção a praia. O coração acelerou ainda mais. E os batimentos iam tomando maiores proporções conforme se aproximava de si, do outro, do eu-outro.

Mais perto, não teve dúvidas: era ele próprio. Eram suas aquela surrada calça jeans, rasgada nas barras. Era sua aquela camiseta cinza, e que outrora fora preta, abarrotada e com pequenos furos nas costas. Todo aquele corpo era seu. Aquele desdém pela vida, aquele jeito de jogar displicente a fumaça do cigarro, e até a marca de cigarros era a mesma que fumava há quase uma década.

O Carlinhos-cópia, por fim, atingiu a areia da praia. Deixava tatuado na areia o formato de seus pés grandes demais para aquele corpo mirrado. Atrás, perseguidor como sombra, Carlinhos-verdade-bruta se perdia em dúvidas. Descartou a possibilidade de alucinação, já que largara as drogas ilícitas há quase uma década. Seria o citalopram?

Olhou para o chão. Ali, estampado na areia morna, o pé do Outro. Tirou os chinelos e colocou seu próprio pé naquele molde da natureza. Encaixou-se perfeita e milimetricamente. Foi então que tirou das entranhas uma coragem que lhe assustou. Gritou com voz rouca:

“Ei! Quem é você?”.

Percebeu que seu grito ecoara na praia, mas crianças empinando pipa, as pessoas tomando sol e os senhores vendendo picolé não notaram sua presença. Sentiu-se invisível. Amargamente invisível. Até que o Carlinhos-do-outro-lado parou, já na beira d’água. Ele virou-se lentamente. Carlinhos-verdade-verdadeira não teve dúvidas: o outro era ele.

“Já não me lembro da última vez que sonhei”.

Respondeu, assim, o Outro, sorrindo. E sorrindo continuou a caminhar. A calça molhou-se de água salgada. As ondas batiam com violência contra seu corpo. Conforme avançava contra o mar, seus passos iam se tornando mais lentos e dificultosos. Nos ombros, a água fazia-lhe flutuar as madeixas, que dançavam com o balanço do mar. O mar tudo engoliu, inclusive o outro Carlinhos, que já não existia mais nem no mar, nem na areia. Só havia brisa e luz.






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