Muitas manhãs no parque


Esse bosque tão amigo

Pedaço de São Paulo antigo

Na saída pro interior

É um pouco de poesia

Na luta do dia-a-dia

Em busca de paz e calor

Em meio a tanta beleza

As cores da natureza

E o canto livre dos pardais

 Parque da Água Branca, de Paulinho Nogueira, 1983


 ***


Estudar e trabalhar na Barra Funda me propicia ter uma relação muito forte e quase que inevitável com o bairro. Minha jornada rotineira se principia no Jaçanã, onde moro, localizado na Zona Norte da cidade, quase uma hora de distância da Barra Funda (na Zona Oeste), contando com o ônibus, o metrô e o trânsito caótico de toda santa manhã.
Sou uma pessoa sistemática que, apesar de muito reclamar da rotina, não se desgruda dos hábitos do dia-a-dia. Ao chegar na Barra Funda, me desloco para uma lanchonete chamada Unidez, em frente à universidade onde estudo. É lá que, por R$1,50, tomo um caprichado copo de café preto. Na mesma Avenida Francisco Matarazzo, o parque Dr. Fernando Costa, mais conhecido como parque da Água Branca, está disponível para todos aqueles que, de alguma forma, querem procurar um pouco de descanso de São Paulo. Os mais de 130 mil metros quadrados guardam um conjunto de árvores de todas as espécies espalhadas por todo o local. Dezenas de bancos e mesas de madeira atraem pessoas no horário do almoço, com suas marmitas semifrias. Esporádicos usuários de maconha podem ser vistos jogando fumaça para o alto, disfarçando vez ou outra de algum policial que passa ao longe, ou, em alguns casos, sendo cordialmente retirados do espaço pela segurança por causa de algum cidadão incomodado com o cheiro.
O parque também possui um espaço de ginástica para os idosos, um pouco acima das fontes quase sempre desligadas. Pode-se ver crianças e adultos empoleirados na mureta de segurança a contemplar as gordas carpas multicoloridas que vivem com algum tédio naquelas águas escuras. Um espaço de leitura é utilizado pelas pessoas com o fim de descansarem, ou conversarem, ou fazerem qualquer outra coisa que não seja a leitura propriamente dita. Alguns casarões são em estilo normando, e possuem vitrais do portal de entrada, em estilo art déco. Eles abrigam, além da administração do parque, os Escritórios de Desenvolvimento Rural de São Paulo (EDR), e o de Defesa Agropecuária de São Paulo (EDA), além do Instituto de Pesca (IP).
Em determinada ala na região, há espaço para feiras e diversos eventos que acontecem com alguma frequência. Já foram recebidos eventos de agronomia, exposições com artesanatos típicos e até uma feira mística. Um grande haras serve para admiradores de cavalos e hipismo terem contato com esses animais, que são todos de raça. Encontrei recentemente um conhecido de rodas de maconha que havia conseguido um emprego na administração do parque. Ele atuava num centro de inseminação artificial mantido no local, onde uma considerável quantidade de esperma de Mangalargas, Cavalos Árabes e Appaloosas, estocada em recinto apropriado, disponível para criadores de cavalo de raça. Quanto ao seu ofício, meu colega afirmou: “Meu trabalho é uma porra”.
Era uma atividade até então desconhecida para mim, acostumado somente com as galinhas e as pombas do parque, assim como um aquário e um pequeno museu de geologia que nunca tive interesse em visitar. E parece que não sou o único, levando em consideração a escassa quantidade de pessoas em frente a esses lugares.
Quanto a fauna e a flora que existem no parque, não é difícil de encontrar galinhas a ciscar entre figueiras, pombos empoleirados em palmeiras e sabiás perdidos em algum pé de bambu. Esses animais são tratados quase sempre pelas pessoas que frequentam o parque. Um homem por volta dos 40 anos passa religiosamente pelo espaço do piquenique, onde ficam as galinhas e os pombos, e deposita pão, milho e outros alimentos para os animais. Com seu boné azul e o costumeiro suéter quadriculado, diariamente ele interrompe sua caminhada matinal e dá atenção aos pássaros alvoroçados, que se digladiam a todo o momento por um único grão ou farelo.  São comuns os atasques das aves, principalmente de galos abusados, contra as pessoas que almoçam no local. Um grupo de faxineiras teve de abandonar a mesa e todos os seus pertences e esperar que a aglomeração de pássaros famintos se dissipasse. Outra vez um menino comia pastel quando, uma a uma, as galinhas subiram na mesa e iniciaram uma série de bicadas na tentativa de arrancar um naco que fosse da massa.
Não é possível determinar uma faixa etária sobre os frequentadores do parque da Água Branca. É numerosa a quantidade de idosos que fazem cooper todas as manhãs. Se não correm, apenas passeiam em silêncio e aproveitam a tranquilidade do lugar. Todos os dias as escolas particulares dos arredores fazem piqueniques com salas inteiras de crianças ainda do ensino fundamental. Elas comem, gritam e chutam os pombos, enquanto alguma professora velha disserta sobre a importância da coleta seletiva, sem muito efeito. Alguns estudantes da Universidade Nove de Julho – e aqui me incluo nesse grupo – passam o tempo depois das aulas estudando ou passando lições a limpo. Apesar disso, não são tão frequentes quanto as pessoas que trabalham em alguma empresa pelos arredores e passam pelo parque na pausa do expediente. Com crachá e roupa social, fumam e conversam até a hora de voltarem para as obrigações.
Assim acontece com Juliano, Selma e Ricardo, que trabalham numa empresa de contabilidade perto da estação de metrô. “A gente vem de vez em quando aqui, depois que a gente almoça. Às vezes alguém tem um baseado e a gente fuma”, disse Selma com seus pouco mais de 25 anos. O trio possui uma hora de almoço e a gasta, algumas vezes, jogando truco. “É normal a gente chegar atrasado no serviço, porque a gente fica chapadão, esquece de tudo, nem vê a hora passar”, declarou Ricardo enquanto preparava um baseado, olhando sorrateiramente para os lados para se certificar de que não havia a presença de nenhum policial ou segurança por perto. Perguntei se eles haviam sido expulsos do parque por conta da maconha. “Uma vez só”, respondeu Juliano. “Mas foi de boa. O guardinha pediu pra gente sair do parque e ameaçou chamar a polícia da próxima vez, mas isso nunca acontece, né?”.
Dona Vilma, septuagenária, faz caminhadas todos os dias no parque. Para encontrá-la, basta passar pela Praça do Idoso e vê-la pedalar um dos mais de 21 aparelhos de exercícios. Ela passa quase duas horas da sua manhã praticando atividades físicas, acorda às seis da manhã com uma disponibilidade que eu, com meus 20 anos, não possuo mais. “A gente que é velho tem mais garra do que vocês que são jovens”, admitiu dona Vilma com certo tom de ironia. É frequentando todos os dias o parque da Água Branca e tendo um olhar um pouco mais apurado, que percebe-se de que dona Vilma tem toda a razão. É absurdo o número de pessoas acima dos 60 anos que fazem caminhada ou praticam algum tipo de esporte, se comparado a quantidade de jovens.
É comum, também, a presença de casais apaixonados que se dedicam a longos beijos, quando não são interrompidos por algum segurança quando a troca de carícias começa a esquentar. Possivelmente casais que se aventurarem em posições que não sejam o sentar comum terão o privilégio de ser chamada a atenção por algum funcionário da segurança. É proibido pôr os pés no banco, sentar-se na mesa ou se deitar em qualquer outro lugar. Apesar da calma, cochilos correm o risco de serem interrompidos pelo canto estridente de um galou o com o barulho do motor do buggy dirigido pelos funcionários da limpeza, que coletam o lixo de todo o parque e o deposita em sacos pretos. Regularmente, quando passam, pedem um cigarro para alguém e depois saem a dirigir o buggy que mais parece um carrinho de golfe.
Quase nada muda, apesar de tudo. Nos mais de três anos de universidade, quase todos eles a visitar o parque diariamente, mudanças são difíceis de serem notadas. O parque da Água Branca, no ano de 2011, passou por obras de revitalização financiadas pelo Governo do Estado de São Paulo, orçadas em mais de R$ 12 milhões de reais. As melhorias se deram na infraestrutura, tanto nos espaços para caminhadas quanto nas construções de arquitetura antiga. O barulho de britadeira não foi suficiente para ocultar a cantoria dos galos, muito menos os entulhos foram empecilho para os frequentadores. As pessoas continuaram a ir ao parque para fumar maconha, para jogar truco, estudar, praticar atividades físicas, trabalhar ou simplesmente para passarem o tempo. E as pessoas, tenho a impressão, continuarão a fazer isso por muito tempo, até que não exista mais o parque ou até quando alguém explodir ele. O parque da Água Branca pode até não ser o melhor parque de São Paulo – não me convém classificar os parques da cidade, já que são muitos e minha paciência é limitada -, ou talvez ser o menos interessante, mas isso não deturpa a existência do parque como um local público e que, devido a isso, é sujeito a abrigar qualquer tipo de gente. Isso pode ser considerado, sim, em qualquer lugar do mundo onde haja seres humanos, mas é justamente por eu ter a oportunidade de vivenciá-lo com mais afinco que o torna tão característico pra mim. É nesse parque que guardo muito de minhas recordações com pessoas queridas, e é nele que posso ter a certeza de que sempre acharei um lugar para me encontrar quando estiver perdido. Pode passar o tempo que for, isso sempre será assim.



(22/05/2012)

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