O estranho

As palavras são tantas que não cabem num papel. Não cabem em toalhas de banho. Não cabem em lençóis brancos. Não cabem em bandeiras hasteadas. Não cabem em vestidos de cetim. Não cabem em qualquer horizonte perdido.
Olhei para o céu e meus olhos encheram de lágrimas. As nuvens gordas eram assopradas por um vento afável. A inquietude dentro de mim era como um mar revolto.
Dez horas da manhã e os primeiros ruídos que vem aos meus ouvidos são o dos carros. A cidade se movimenta em seu próprio inferno cinzento e cheio de barulho. A janela da sala é como um olho aberto em direção a um mundo quase apocalíptico em sua imensidão de ausências de significado. Da janela a cidade parece uma criança carente, que estende os braços e chora.
Acordar tarde traz desânimo ao meu estômago. A fome passa longe e a única coisa que consigo ingerir é a fumaça amarga do cigarro barato que sobrou da noite anterior. Bebo um golinho do café frio e me arrependo de não ter aprendido a fazer café direito com a minha mãe.
Ouço um barulho no quarto. Vou até à porta e vejo um homem dormir em meu leito. Ronca como um urso a hibernar – se é que ursos roncam -, vencido pela embriaguez e o cansaço do corpo. Por um instante me esqueço daquela face, me esqueço daquele corpo por completo e entro em desespero em pensar que abriguei em meus lençóis um estranho, um intruso. Meus neurônios um pouco lentos começam a funcionar, de início com preguiça. Aquela face amassada entre os travesseiros me transporta às experiências libidinosas da noite anterior.
Mesmo assim, não sei quem é. Faço grande esforço mental, vasculho nos arquivos da minha memória aquele semblante nunca antes visto. Encaro o cabelo preto, a barba negríssima, os lábios entreabertos com cheiro de hálito amanhecido. Busco nas orelhas algum ponto conhecido, olho para aquelas mãos que agarram os travesseiros, mas nada reconheço.
Vejo em seu pescoço guias multicoloridas, espalhadas pelo peito moreno numa conexão com seus orixás. Dorme como se aquela cama fosse sua, toca os lençóis e os travesseiros como se fossem seus. Detinha certa ousadia aquele corpo inerte e mergulhado em sonolência. Cheguei perto de suas pernas, contemplei os pés de unhas feitas, emaranhados num parelho de roupa. Por um instante tive gana de tocar aquela estrutura corpórea, deslizar os dedos por aqueles pelos negríssimos, me perder naquela pele trigueira, mas me contive temeroso de que pudesse despertá-lo daquele sono que mais parecia poesia.
Aquela imagem me perturba. Retorno a sala e me sento outra vez em frente à janela. Olhando pro céu e pra cidade, tento me lembrar daquele homem no qual troquei fluídos e carícias e gemidos na última noite, tão etílica e perturbada. Algo me estremece por dentro e creio ser mais do que meu estômago maltratado. Meu corpo por inteiro estava tomado por dores causadas pelo sono [mal] dormido no sofá desconfortável.
Pensei em ligar a televisão ou colocar uma música no rádio, mas podia acordar aquele homem que pouco provavelmente se recordaria do meu nome. Tanta preocupação com um estranho, dentro do meu próprio território, meu habitat. Descartei a ideia de continuar mastigando aquele silêncio impregnado dentro da casa, remexi em algumas caixas de papelão e de lá tirei uns velhos CDs de música clássica. Coloquei o Bolero de Ravel e tornei a me sentar. De alguma forma aguardava com certa ânsia o despertar do homem em minha cama. O volume do aparelho estava suficientemente alto para alguém acordar de um sono que não fosse tão profundo.
Vasculho o maço e me deparo com a ausência de cigarros. A vontade de fumar não era maior do que a de continuar sentado, estático, grudado à poltrona como uma cloaca agarra-se a um rochedo. Não ansiava sair à rua, caminhar até a lanchonete da esquina e correr o risco de encontrar algum conhecido pelo percurso e ser obrigado, pela educação e os bons modos, a dialogar falsamente enquanto meu corpo dói e um estranho dorme em minha cama.
Foi então que os barulhos no quarto se repetiram. Fui até lá e me deparei outra vez com aquele homem, mas daquela vez estava em pé, apenas carregando as guias no pescoço e uma cueca branca abarrotada. Olhava-me com uma mistura de receio e curiosidade. Passou as mãos pelos curtos cabelos pretos, coçou a barba e prendeu um bocejo.
- Oi.
- Oi.
Ele começou a vestir as calças com alguma urgência. Carregava no semblante as marcas de uma noite bem dormida, enquanto eu era dominado pelo torpor de um sono mal resolvido. Naquele instante tive raiva daquele homem que havia tomado conta da minha cama enquanto eu me amargurava no sofá duro.
- Desculpa, mas eu não me lembro de muita coisa.
- Eu também não.
Ao concordar e partilhar do mesmo estado que o dele, me senti estranhamente aliviado. Não tive receio, muito menos pudor, de perguntar-lhe o nome. Por um instante tive a impressão de que ele também não se lembrava do próprio nome. Emudeceu ao pegar as roupas espalhadas pelo quarto, apanhando-as como quem retira da terra uma árvore e suas raízes.
- Meu nome é Hugo. E eu acho que já tenho que ir andando. Você sabe que horas são?
- Umas dez horas, eu acho.
- Porra, tô atrasado.
Ele vestiu uma calça cinza olhando para mim. Dava pulinhos para a roupa se encaixar no corpo. Me senti um idiota ao olhá-lo com tanta ternura. Sempre tive grandes problemas em me apegar com facilidade à estranhos. Ele pareceu, de alguma forma, saber disso e ficou sem graça, assim como eu que, cansado e aflito em estar ali, me desloquei para a sala, para Ravel, para a janela e a cidade.
Uma estranha visita. Pensei em lhe oferecer café, uma bolacha, um bolo para comer antes de ir embora, mas continuei afogado em pensamentos e indagações. Tentei me recordar da noite anterior e de como tudo havia começado, já que eu sabia como as coisas haviam terminado: no silêncio, no constrangimento e no esquecimento. Flashes invadiam minha cabeça atormentada por uma dor aguda. Era como pedaços de um quebra-cabeça confuso que, por mais que eu tentasse montar, nunca teria muito sentido.
- Eu já vou embora.
Onde eu havia o encontrado? Em que lugar havíamos nos conhecido? Aquele homem parado no centro da sala era como um ponto de interrogação cintilante numa página em branco. Demorou a entender o que ele dizia, impaciente esperando que eu abrisse a porta. Aproximei-me de si e senti o cheiro de sua pele que por algum tempo tive vontade de tocar e cheirar e lamber e sentir aquela pele trigueira que ficou ainda mais bonita por causa da camisa branca.
Abri a porta como alguém que abre o próprio peito. Fitei os pelos que lhe escapavam um pouco da camisa desabotoada. Ele me deu tchau e foi embora me deixando em silêncio num silêncio ainda maior que era o que predominava dentro de mim. E com aquele silêncio continuei a olhar a janela e me senti parte daquela cidade cinza e triste.

(Janeiro, 2012, São Paulo)





Um comentário:

Ka disse...

Não tenho muitas palavras diante desse texto, genial, profundo, e apesar de conter uma história particular, sinto que se aplica à qualquer um, todos já tivemos um estranho dentro de nós mesmos, muitas vezes, nós já fomos estranhos para nós mesmos; ainda bem que há a poesia, para expressar essas indagações e transmitir esses temores diários, que nem são tão diários assim, mas que são suficiente para atormentar, para trazer sequelas de dúvidas, ás vezes arrependimento, mas quase sempre, só trazem sequelas.. dói, mas o que seria a vida sem as dores?
Parabéns pela capacidade que você tem em transformar sentimentos em palavras!