Unhas Vermelhas

“Há duas épocas na vida, infância e velhice, em que a felicidade está numa caixa de bombons”.
Carlos Drummond de Andrade



Os carros se enfileiraram em frente à Rua Gaspar Vitorino, mergulhada pela luz alaranjada das seis da tarde. Clarice ainda teve tempo de retocar a maquiagem dentro do automóvel antes de entrar na gigantesca residência, que se estendia imponente com suas pilastras grudadas às heras. Uma velha senhora, de mais ou menos setenta anos de idade, chorava em frente ao portão de entrada da casa, limpando com cuidado as lágrimas que lhe caíam pelas bochechas flácidas.
- Meu marido morreu, senhora! – balbuciava a mulher, tentando enterrar o corpo frágil nos braços de Clarice, que se esquivara do abraço, limpando a poeira sobre os ombros.
- Se a senhora ficar me abraçando não tem como te ajudar. Por acaso tenho cara de psicóloga? Sou uma detetive renomada.
A detetive entrara na residência acompanhada de alguns policiais, que explicavam o que havia ocorrido no lugar. Segundo eles, o senhor Hildebrando de Assis havia sido encontrado morto à beira da piscina do casarão, e o corpo ainda não havia sido retirado do local para que pudessem fazer mais algumas análises sobre o ocorrido. Passaram por uma cozinha equipada com eletrodomésticos de alta tecnologia, até chegarem à um extenso quintal rodeado por cercas-vivas.
Clarice aproximou-se da beirada da piscina, agachando-se sobre um corpo caído. A água da piscina estava levemente avermelhada pelo sangue que escorrera do corpo estendido de braços e pernas abertas. O crânio fortemente fraturado exibia parte do cérebro, e alguns pedaços de massa encefálica podiam ser vistos espalhados pelo chão, junto a fios de cabelos brancos, provenientes do morto.
- Quantas pessoas moram na residência? – perguntou a detetive, olhando-se em um pequeno espelho que carregava na palma da mão.
- Quatro, senhora – respondeu um dos policiais, alto e magro – A senhora Clotilde Assis, o falecido senhor Hildebrando, a empregada Rebeca Monteiro de Lurdes e a garota Luísa, neta do casal. O crime ocorreu entre o meio-dia.
Clarice aproximou os olhos ainda mais do corpo, visualizando arranhaduras no ombro do cadáver, que possuía entre seus sessenta e setenta anos de idade. Ela vestiu as mãos com luvas de látex, tocando levemente a pele enrugada do morto. Após alguns instantes, ergueu-se, ajeitando o vestido florido, e pediu para que pudesse conversar com os moradores da casa.
Ela sentou-se em um luxuoso sofá de veludo, cruzou as pernas e ficou à espera da primeira pessoa que seria interrogada, pedindo um suco de maracujá. A velha Clotilde sentou-se à sua frente, ainda aos prantos. Clarice havia perguntado à mulher aonde havia estado no horário do acontecimento, onde obteve como resposta alguns soluços de choro. Irritada, Clarice deu alguns goles no suco de maracujá recentemente feito, sentindo a garganta seca.
- Eu estava no SPA. Hoje é aniversário dele, e queria estar linda para o meu marido. E quando cheguei em casa... O encontrei morto! – Clotilde enfiou o rosto cheio de rugas no lenço de seda que carregava nas mãos, caindo logo em seguida no chão, em um desmaio.
- Ficar linda? Difícil... – murmurou a detetive, pedindo em seguida para que os médicos levassem a velha desmaiada.
A segunda pessoa a ser interrogada fora a empregada, Rebeca, que trazia nos olhos vermelhos imensa tristeza. Provavelmente, beirava aos trinta anos. As mãos trêmulas estavam presas à um terço, no qual rezava baixinho à cada intervalo silencioso das perguntas feitas.
- Eu havia saído ao supermercado, comprar beterraba e carne moída para o senhor Assis, porque ele havia pedido. Cheguei aqui mais ou menos umas... umas treze horas da tarde. A casa nunca fica silenciosa. Eu estranhei. Então me lembrei que hoje é dia de limpar a piscina, então... Eu vi o corpo do senhor Hildebrando lá, cheio de sangue. Misericórdia!
Clarice pedira mais uma rodada de suco de maracujá, enquanto dispensava a empregada religiosa. Lembrou-se de Luísa, a neta do casal, e pediu para que a menina também fosse interrogada. A detetive ainda dera algumas olhadelas nas portas e em todas as janelas da casa, e vira que nenhuma possuía sinal de arrombamento. O policial alto e magro acompanhou Clarice até o andar de cima, onde a garota estava trancada em seu quarto.
Enquanto os policiais esmurravam a porta, a detetive olhava aquela cena com certa repulsa. Afastou da porta os três homens, informando-lhes que não era daquela maneira que uma menina era tratada. Após alguma insistência, uma garota, entre seus doze e catorze anos, abrira a porta do seu quarto, deixando entrar Clarice no recinto. A detetive avistou dezenas de bichos de pelúcia enfileirados em dezenas de estantes nas paredes cor-de-rosa, alguns pôsteres de modelos bonitos, um computador e uma tevê de vinte e nove polegadas. Depois de abrir a porta, a garota de fartos cabelos ruivos sentou-se de pernas cruzadas em sua cama de edredom listrado, e abriu um livro de capa amarela.
- Quero te fazer algumas perguntas – informou Clarice, sentando-se na cama, ao lado da menina, que continuava impassível, sem interromper à sua leitura – Seu nome é Luísa, não é? Quantos anos você tem?
- Treze.
Clarice ergueu-se da cama, e lentamente se pôs a olhar todos os cantos do recinto. Como se acostumada ao local, abria as portas dos guarda-roupas, fechava, e depois os tornava a abrir. Remexia com desdém o cabelo de algumas bonecas cobertas de uma fina camada de poeira, deslizava os dedos sobre alguns livros e filmes caídos no chão.
- Suas unhas vermelhas são tão bonitas. Ficaram ótimas nos ombros do teu avô – disse a detetive, retirando de um baú de brinquedos um velho martelo ao lado de uma caixa de bombons. A arma estava empapada de sangue e tinha enroscada em si alguns fios de cabelo branco e massa encefálica – Você vai ficar uma bonequinha linda na prisão, Luísa. Linda mesmo.
Luísa lançou-lhe um sorriso. Erguendo-se lentamente da cama, depositou o livro debaixo do travesseiro fofo, aproximando-se da janela aberta do quarto. Clarice viu a garota ajeitar os fartos cabelos ruivos e limpar algumas lágrimas das bochechas sardentas. Ela pousou as alvas mãos sobre o parapeito da janela, olhando Clarice com um profundo sorriso de alívio.
- Eu estava cansada demais para continuar satisfazendo os prazeres do vovô. Eu tinha que fazer alguma coisa, me entenda.
A detetive correu até ela, teve tempo apenas de ver Luísa lançar o próprio corpo contra a janela. Clarice olhou para baixo, vendo o corpo da menina estendido no chão rodeado por poças de sangue. Olhou ainda o baú de brinquedos, dando-se conta naquele exato instante o porquê da poeira nos brinquedos da garota. Ela não brincava mais porque não havia motivos para brincar. Clarice apanhou um doce na caixa de bombons e enfiou-o na boca, saindo logo em seguida do quarto.

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