Réquiem

Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me.
Jorge Luis Borges







Está gravando? Oi, oi, oi. Está gravando? Alô. OK. Vamos começar.
Bom, devo deixar bem claro que esta será a última vez que ouvirão a minha voz, que será a única parte de mim que todos vocês poderão sentir. Esta será a vez em que quero deixar registrado um pouco de mim para que eu possa ter um fio de vida depois que todo o meu corpo parar de funcionar. Se fosse possível, deixaria meu espírito preso dentro de um frasco de maionese, dentro de qualquer recipiente que não possua qualquer fresta mínima, pois o que há de mais verdadeiro em qualquer ser humano é sua alma, é o que os olhos não podem ver, mas que o coração pode sentir. E é assim, com este tom melancólico de despedida, que olho para a janela do meu quarto e vejo a cidade, vejo os prédios cobrindo o sol que não consigo encontrar, aqui deitado, com canos e fios e esparadrapos cravados em minha pele, não consigo ver o sol que deve estar muito bonito, cor de fogo, assim tão violento e tão triste, anunciando o fim do dia.
Hoje de manhã acordei com a vontade de me arrepender de todas as coisas ruins que fiz contra as pessoas. Conscientemente ou não, vim deixando um rastro de tristeza no decorrer dos anos; magoando as pessoas, fazendo com que elas tivessem pouca fé em mim, fui deixando que a confiança que todos possuíam por mim fosse diminuía, degradada, e não sem razão comecei a crer que a vida não valia a pena ser vivida, assim, sem cor, sem nada que me agradasse. Percebi o quanto a vida se torna dura conforme crescemos, e temos que tomar cuidado para que não nos tornemos pedras, seres inanimados, estáticos, apenas tomando conta de um espaço por obrigatoriedade, por pura e mera sobrevivência. Era tão fácil sentir o vento no rosto nos dias em que eu corria descalço pelos morros, contemplava em êxtase os papagaios coloridos que os moleques controlavam com perfeita maestria em cima da laje de suas casas. Brincávamos de pique-esconde à beira do córrego, as moitas, as paredes de tijolo e madeira dos barracos e até mesmo os tanques de lavar roupa nos serviam de esconderijo para a brincadeira, até o momento em que nos descobriam, e então corríamos feito loucos pelas vielas, derrubando tudo e qualquer coisa pela frente, e aquele poste, aquele poste velho e coberto por cartazes de casas para alugar, era o ponto que chegávamos, ofegantes, e então apenas os mais ligeiros e espertos conseguiam ser um dos primeiros, dar uma palmada e gritar “Bati!”.
Sinto-me triste ao pensar que hoje será o último dia, que toda a minha vida, com suas tempestades e calmarias, terá um final ausente de beleza. A morte é como a sombra que nos segue. Não há como nos desvencilharmos dela, faz parte da nossa existência, e tudo que existiu, o que existe e um dia virá a existir faz parte deste ciclo covarde que muitos consultam designar de “natural”. Não quero pensar que vivi todos estes oitenta e quatro anos e tudo o que construí se tornará pó dentro desde quarto de hospital, assim, sem beleza alguma, sem a presença de vento, sem o sol que até mesmo a cidade faz questão de esconder de mim. Apesar de tudo, não queria morrer aqui. Queria ter as forças nas pernas para poder subir com dificuldade o morro íngreme apinhado de casinhas simplórias, queria ter vivacidade nos braços para poder acenar a todos os meus amigos e vizinhos, poder agradecer a todos toda a felicidade que compartilharam comigo, mesmo sem querer. Quem me dera poder voltar a trepar nas árvores e jogar pedra nas galinhas, assustá-las pelo simples prazer em vê-las correr, esbaforidas e assustadas.
O que hoje sobrou de mim está aqui, deitado sobre a cama, com este gravador aqui perto, ao lado de uma enfermeira que sorri e mexe em todos os botões deste aparelho que me pareceu bizarro mais do que qualquer outra coisa. A sobra agora aprende a pedir perdão a si mesma e, então, aceitar o perdão. Vejo, agora, que o perdão só toma sentido e efeito quando dado à própria pessoa que deseja ser perdoada. É assim que deixo aqui gravado a minha voz, o pouco de minha história e de toda a minha saudade da favela, esse lugar que parece causar medo, receio e asco à toda uma cidade, à todo um mundo; a favela não é um mundo dentro do mundo, é parte do universo como um todo. Se fosse para morrer feliz, gostaria de estar ali, junto ao meu povo, deixando de cometer os mesmos erros, aproveitando cada segundo que deixei de lado.
Ana, por favor, desliga o gravador. Já disse o que tinha pra falar.

Um comentário:

Cartografia n'alma disse...

Lindo, vc não responde meus email's... que coisa feia... kkkk
Olha, o lançamento do nosso livro é no próximo dia 18 de dezembro E RÉquiem esta nele. Quero saber se vc poderá vir. Se não puder entre em contato e me mande seu endereço para que eu lhe envie o seu exemplar.
Milhões de bjks!!!