Agosto, triste Agosto

Sentia-se em casa. Cada chão, cada parede e teto daquele edifício velho e em ruínas já estavam marcados em sua memória. E todos os dias, antes do trabalho, Geraldo fazia questão de cravar ainda mais em sua cabeça cada centímetro daquele local, memória que às vezes lhe falhava. Olhou para o calendário abarrotado em cima de sua mesa e constatou o que há dias esperava: 8 de agosto. Era naquela data que comemorava seus trinta anos de emprego naquela empresa, e emocionado, perguntava aos seus colegas de trabalho:
- Sabe que dia é hoje?
- Quinta-feira?
- Também. Faço três décadas de empresa hoje. Não está orgulhoso?
- Oh, sim. Parabéns - respondiam sem muita vontade, onde logo voltavam em seguida aos seus afazeres.
Triunfante, remexeu em uma caríssima garrafa de vinho que havia comprado com suas árduas economias, fazendo barulho com a sacola de plástico enrolada na bebida. Olhou para o relógio do monitor de seu computador, dando-se conta de que faltavam trinta minutos para o horário do seu almoço.
Dirigiu-se até uma densa porta de madeira localizada um andar acima do setor onde exercia o seu cargo, dando leves batidas que foram recebidas por uma voz abafada que lhe mandava entrar.
Acomodou-se em um banco de couro, colocando o vinho no meio das pernas. Um homem, com uma careca reluzente, assinava calhamaços de papéis, enquanto que uma secretária ruiva socava o teclado de um computador velho.
- O senhor me chamou?
- Sim, Geraldo - respondera o chefe, sem tirar os olhos de sua mesa repleta de objetos amontoados.
- Antes queria lhe perguntar algo.
- Sim...
- Sabe que dia é hoje?
- Quinta-feira - resmungou o homem, coçando a careca que brilhava de suor.
- Também. Hoje faço três décadas nesta queridíssima e amada empresa. Trinta anos não são trinta dias...
- Oh, entendo. Parabéns - sibilara o chefe que, por fim, ergueu os olhos, tomando um gole de uísque em um copo com gelo a derreter.
Imediatamente, Geraldo abrira a garrafa de vinho com um saca-rolhas que carregara consigo estrategicamente em seu bolso, despejando a bebida no copo vazio do chefe que o olhava atônito, assim como a secretária, assustada com o estrondoso barulho da rolha que voara pela sala.
- Mas o que é isso? - perguntou a secretária, do outro canto da sala, ajeitando-se em sua cadeira, deixando cair sobre a mesa uma caneta.
- Vinho dos bons, senhora - respondeu Geraldo com os olhos a brilhar, esperando que seu chefe tragasse aquela bebida que havia comprado com tanto carinho.
Porém, o homem permaneceu imóvel, a olhar para o copo com vinho como se tivesse diante de si uma dezena de rãs mortas. Com a ponta do dedo afastou a bebida, onde Geraldo novamente a empurrou a ele, com um sorriso que lhe ia de orelha à orelha, um sorriso que quase lhe saía pela boca. O chefe coçou a careca que parecia ainda mais enxarcada de suor e sorveu, temeroso, a bebida, no qual fechou os olhos e esboçou em seu rosto enrugado um leve sorriso de contentamento.
- O que o senhor tinha pra falar, chefe?
Como se acordado de um transe, o homem ajustou a gravata amarela que lhe apertava a garganta, endireitou-se em sua poltrona reclinável, cruzando as mãos em cima de sua estufada barriga. Suspirou fundo, pigarreando logo em seguida, como se fosse pronunciar um demorado discurso político:
- A nossa empresa se alegra em tê-lo como funcionário há tantos anos, um homem que sempre seguiu com as nossas normas e ajudou, com suas próprias mãos e suor, a construir o que a nossa empresa hoje ela é...
E enquanto o chefe enchia aquela sala de palavras encantadoras e pomposas, Geraldo já imaginava em sua sala uma televisão de LCD que, provavelmente, iria ganhar de presente do homem que, ao contrário das outras pessoas daquele local, conseguia ver seu potencial. Em sua mente, imaginou uma garagem que iria mandar construir para pôr um carro que ganharia, e na parede de seu quarto colocaria a medalha que talvez ganhasse como funcionário exemplar.
-...e cumprindo com seus horários, fazendo com que nós prosperássemos. Porém, senhor Geraldo, os dias atuais estão cada vez mais complicados, cheios de reviravoltas e turbilhões, e é necessário limpar o baú do passado para que um brilhante futuro seja concretizado. Por esse motivo, estamos desligando o senhor da nossa empresa.
Geraldo pareceu não ouvir. Pediu para que o chefe repetisse, e a cada momento que se passava, cada vez mais que permanecia ali dentro daquela sala que firmava ainda mais aquela verdade dolorosa, mais ele sentia em seu peito aquelas palavras ecoarem dentro de si, cravarem-se em sua alma como o gume de uma faca traiçoeira.
O funcionário colocou debaixo do braço o seu caríssimo vinho, passou em sua sala, de cabeça baixar para não esboçar nenhum sentimento que denunciasse a sua demissão aos colegas de trabalho - ou melhor, ex-trabalho. E recolhendo suas coisas lentamente, saiu daquele setor que tanto conhecia, cumprimentou pela última vez o homem do elevador, que sempre contava a mesma piada todos os dias, e sem se despedir de ninguém, saiu daquele edifício que, por fim, parecia desabar em suas costas.

3 comentários:

Anônimo disse...

E, infelizmente, existem muitos "Geraldos" no mundo.
Como dizem esses "consultores empresariais": "o mercado de trabalho não valoriza tempo de casa de funcionários, valoriza a criatividade e raciocínio rápido."

Anacronismo, definitivamente, não faz mais parte do mercado de trabalho e devemos nos renovar, assim como fazemos nos campos pessoais da nossa vida!

Denise Ravizzoni disse...

Good job, my favourite kid

Maria disse...

Onde eu estava que perdi tudo isso?!
...
Moço, eu consigo até sentir o cheiro em seu texto. Muito bem escrito!

Saudades suas.
Meu beijo