O conto do Adeus mudo


a José Saramago

Bate-lhe na cara, bate-lhe, gritavam as senhoras empoleiradas no parapeito dos cortiços que circundavam a minúscula pracinha. E as negras lançavam contra o chão a comida que era propriedade dos viralatas que latiam com olhos tristes para o alto dos casebres sujos pelo tempo. E lá embaixo esmurravam-se dois marmanjos sujos de cerveja e carvão, vez ou outra tirando sangue um do outro, e a vizinhança fazia-se platéia para aquela tragédia grega, Bate-lhe, seja homem, pois!, gritara uma gorda dona de quitanda de doces, torcendo com os dedinhos roliços um pano de prato encardido. Tinha medo, a mulher, pois se tratava de seu marido um dos lutadores, o de nariz pintado de vermelho, pingando sangue como se fosse coriza. E quando seu homem caía no chão e as gargalhadas espocavam reverberantes, a quitandeira fazia-se muda em sua tristeza íntima, escondida debaixo de suas calçolas. E junto de sua agonia jazia seu gato gordo, tal qual a dona, de olhos esbugalhados a sentir o cheiro salgado das pernas peludas da mulher que servia-lhe de cabana para tanto sol pintado no céu daquele início de tarde. As palmas eram tantas que parecia chover debaixo das nuvens claras, e eram também vaias e assovios, as crianças pulavam do colo das mães e despregavam as bocas dos peitos fartos que respingavam leite, os infantes caíam no chão e corriam para a borda do círculo que fez-se ao redor da rixa, batiam as mãozinhas em sinal de contentamento, mas os olhos de jabuticaba e lábios entreabertos denunciavam o espanto diante de tamanho episódio. As pombas magricelas e pardas pisavam nas gotas de sangue provenientes dos batalhantes, ciscando o chão como se não houvesse mais nada de interessante a fazer. Um grito cavernoso cortou o pandemônio como navalha, as negras descansaram suas panelas vazias de comida, os cães lambiam suas comidas com desgosto e o gato da quitandeira e ela própria paralisaram diante de tal acontecimento. O punho cerrado de um dos marmanjos parou no ar, e assim ficou como uma estátua a olhar o outro com assombro, como se houvesse encontrado a Morte dentro dos olhos do inimigo. E assim havia acontecido. Ele despencou no chão como um cacho de fruta madura, mas não caíra de todo; foi-se indo devagar, com lentidão monstruosa que parecia eternidade, e então tombou o peito no chão de terra e o punho não havia sido aberto, nem na hora da própria destruição. Fez-se silêncio de funeral ao redor do homem que agonizava ainda um pouco, revirando os olhos vermelhos e tentando tocar o canivete cravado no corpo de modo tão doloroso que havia aceitado a própria partida ao deparar-se com gigante dor do ferimento. Bateu os membros na terra e o pó subia calmo e caía de volta no chão, e as pombas batiam suas asas, entediadas e barulhentas, pousando orgulhosas no topo dos telhados esburacados onde defecariam no mais tardar à uma hora e depois retornariam para as ruas à procura de coisas interessantes para serem saboreadas e presenciadas. A quitandeira espantou seu gato com um chute e correu para a multidão espremida, e o círculo tornara-se mais notório, a vizinhança desejava ver a desgraça mas não queria consertá-la, talvez por medo de mau agouro. Não precisou fazer esforço para ganhar espaço entre o povo, a gorda, que mergulhava como em rio no corpo dos outros e engolia um soluço de choro temendo ver o sangue do próprio homem. Ao chegar luz em seus olhos, viu sem muita nitidez a silhueta do seu macho mexer-se lenta, quase cansada, e então deu-se conta de ter esquecido o óculos em cima da mesa e o feijão na panela. O esposo circulava com os pés o cadáver do homem enquanto ia limpar na manga da camisa surrada o sangue ainda quente de sua mão assassina. Não havia notado a presença da mulher, gorda e suada quase à sua frente, a cruzar os braços em cima dos peitos volumosos, e o gato seguiu-a mesmo depois do golpe, a miar e a por a língua amarelenta para fora. O som da sirene espocara e todos iam desfazendo aquela massa corpórea, dispersando, todos voltando para seus afazeres, para a janta, para a carvoaria, para os estábulos, para as vendinhas, para os bordéis, para suas vidas. Um homem de bigode preto, que dizia-se polícia, de chapéu e bota no pé, botou as mãos na cintura e suspirou como se a canseira houvesse pousado em suas costas, a quitandeira esfregava convulsivamente as mãos no pano de prato e olhava para seu homem e pro defunto e pro polícia e para o gato e de volta para seu macho e não sabia o que fazer com seu corpo, sentia-se tão inútil que uma estátua desempenharia melhor sua função ali, se é que ela havia alguma função a ser desempenhada. Matou um homem, João, anunciou o polícia que mascava uma goma de três dias e nada de endurecer. Aproximou-se com passos lentos do homem morto e fez careta ao ver o estrago no corpo do marmanjo que já nem parecia tão marmanjo assim, assemelhando-se quase à um pedaço de madeira envelhecida, porque quando se morre o corpo, se morre também as máscaras que formam-se durante toda uma vida. Matar e viver, que diferença faz, doutor?, resmungava o marido da quitandeira que já esticava os braços para ser algemado à pedido do polícia, e a gorda mulher quitandeira dobrava e desdobrava o seu paninho encardido e remoia-se por dentro e queria chorar ao ver seu homem tão preso daquele jeito e sujo de sangue alheio, queria desmoronar o corpo todo no chão e segurá-lo pelas pernas e morder-lhe as panturrilhas e gritar Não, não, não vá, seu imbecil, não te deixem prender, mas o grito na sua boca não queria sair nem mesmo a coragem covarde escondida atrás do seu coração. Seu homem teve tempo ainda de olhá-la um pouco, nem triste nem alegre, apenas olhou-a como se fosse obrigado olhar, como se devesse satisfação, e então entrou no carro do polícia que, por fim, cuspira a goma no chão de terra e endireitou o maxilar dolorido de tanto mascar. A quitandeira ensaiou alguns passos em direção ao carro e ousou, ainda, erguer um dedinho na chance de ele voltar a olhá-la, mesmo que com aquele tédio costumeiro, mas olhá-la. Mas o carro do polícia foi-se deixando poeira nos olhos da gorda, foi-se fazendo o seu trabalho, trabalho que era para ser feito. Ela ainda olhou para o defunto e fez sinal-da-cruz, cuspiu o gosto amargo encostado na garganta e foi embora cuidar do feijão queimado na panela, enquanto o tempo encarregava-se de cuidar do morto. E as pombas batiam as asinhas.

3 comentários:

Fabiano Silva disse...

Muito legal.

Alê disse...

Olá

Afe!!!

Estava demorando o seu retorno.

Saudades mil.

Beijos

Alê

Thiago Panza Guerson disse...

Ótimo o texto, praticamente vivenciei a cena.

Ah... obrigado pelo comentário sobre o livro!

Abraços!