Dias atrás, na
capela, o silêncio era interrompido pelo bradar do sino, a família não queria
órgão nem cantoria. O caixão no qual o morto havia sido instalado possuía a
mesma negritude de seus trajes extremamente sóbrios. A rosa vermelha presa no
bolso do terno não era suficiente para rejuvenescer a aura do ente estimado.
A fila de
parentes era composta pelos três filhos e uma mãe aos prantos, desesperada em
ter de encarar sua viuvez de uma vez por todas. Logo atrás se fazia presente a
reunião de colegas e agregados, talvez mais curiosos em ver o cadáver do que
tristes pela perda. E, ainda mais atrás, a gente sentada nos últimos banquinhos
de mogno não entendia muito bem o que fazia ali, preparados para ver a missa e,
que coisa!, uma celebração fúnebre.
O padre rezou
em latim pela alma do morto e espargiu água benta, sabe-se lá porquê, nas
coroas de flores. A viúva bambeou as pernas quando uns homens da funerária se
prepararam para lacrar o féretro, após a aglomeração de gente se despedir do
falecido, todos organizados em silêncio numa fila indiana. Cada um à sua
maneira deu seu adeus, fosse nas lamúrias de uma tia-avó ou ali na perplexidade
do neto que o pai fez questão de segurar no colo para que ele visse melhor o
caixão. A viúva se entregou a um desmaio e só foi acordar com um cheiro
terrível de álcool, já em casa. Desmaiou outra vez por não ter visto o caixão
ser coberto pela terra. A culpa, tão terrível!
Mas, como há
males que vêm para o bem, a viúva não precisou presenciar o que na necrópole se
passou. O que era uma garoa de chuviscos ligeiros transformou-se numa
tempestade cinza e nervosa. Guarda-chuvas mexiam-se em direção ao topo do
cemitério e, logo à frente, os três filhos mais um funcionário da funerária
carregavam o caixão. De todo modo, era um jeito estranho, quiçá audacioso de se
levar um morto até a sua cova no meio de tanta lama. Sapatos sociais com seus
lisos solados deveriam ser proibidos em locais com muita terra e lama. Não aconteceria
o que se sucedeu logo depois quando a aglomeração estancou diante de uma
simplória cruz de pedra.
“Vão derrubar
o morto, Jesus”, gritou alguém do fundo quando viu o filho mais velho se
desequilibrar numa das tantas poças e deu continuidade numa reação em cadeia, derrocando
todos os outros homens.
O ataúde
tombou e se pôs a rolar cemitério a baixo. Todos viram o objeto se desfazer em
partes: primeiro as beiradas rachadas pelas pedras, depois a tampa que
soltou-se com tremenda facilidade, e por fim o morto que, coberto de lama e
chuva, parou de rolar quando uma lápide serviu-lhe de breque. Ficou ali
estendido, de olhos bem abertos, como se pudesse ver a tudo e todos, como se
ainda houvesse vida em algum lugar perdido de sua íris.
Os três filhos
e todos os demais presentes fitaram atônitos o morto desajeitado. Beatas e velhotas
fizeram sinal da cruz, o padre não conseguia se mexer e não parava de apertar a
bíblia contra o peito. Um gato malhado pairado no topo de uma lápide filmava o
ocorrido com extrema curiosidade. Ninguém ousou chegar perto do defunto
esparramado, ainda mais quando este abriu os olhos com notável perplexidade e
encarou a todos sem saber muito bem o que fazia ali.
A multidão se
dissipou para todos os lados. Pessoas saíram em disparada sentido ao portão do
cemitério. Os mais jovens escalaram os muros, os mais velhos cuidaram logo de
se arrumar atrás de algum lugar que não pudessem ser vistos, na impossibilidade
de correr. Guarda-chuvas foram abandonados assim como tantos outros objetos que
o medo fez questão de fazer com que as pessoas derrubassem. Até mesmo os três
filhos e o padre correram de lá, todos sujos de barro por causa dos tombos
ocasionados pelo percurso.
Já quando não
havia mais ninguém lá e quando a chuva deu trégua, o morto, que já não era mais
morto, talvez mais cataléptico do que defunto, se ergueu desajeitado a sentir o
corpo inteiro latejar. Passou a mão pelo bolso do paletó à procura dos
cigarros. Não entendia o que fazia num cemitério e o porquê de todos haverem
desaparecido.
Abandonou a
rosa presa ao traje em cima das pedras. Cambaleante, como se houvesse passado
por uma garrafa inteira de cachaça, seguiu cemitério abaixo rumo à sua casa. Reparou-se
e viu a sujeira que empesteava seu corpo. “Minha mulher vai me matar”, pensou
enquanto caminhava tranquilamente de volta para seu lar.
2 comentários:
"Sapatos sociais com seus lisos solados deveriam ser proibidos em locais com muita terra e lama."
Isso vai além do que você escreveu, me fez viajar num contexto sociológico hehe
Belo texto, Leandro!
muito dinheiro pra comprar muitas putas :)
Le!Parabéns, você escreve muito bem!adorei, belo texto.
um grande beijo, menino talentoso!
Juh
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