A última noite com Charlote McBell

O cigarro aceso me lembrara momentos de outrora, e eu já quase não me lembrava de como o corpo dela era tão belo, com aqueles traços sinuosos, aquela pele branca e feita de veludo. Fui conduzido para qualquer lembrança do passado, naquele motel de quinta em que os ratos nos fitavam com seus olhos pequeninos, e as horas voavam do velho e empoeirado relógio de madeira, pendurado na mesma parede, no mesmo local, criando com o tempo a marca de seu território em traços enegrecidos, como se possuísse direito daquele espaço.
Ela, sempre nua e bela, corpo esculpido em mármore carrara com o mais delicado zelo. Eu, trêmulo e vazio, repleto de buracos que transformaram meu espírito em uma peneira.

Uma pessoa apaixonada assemelha-se muito à um rato, pois devora restos deixados pela pessoa amada e se arrasta pelos cantos e devora a sua própria derrota. Não queria pensar em nada que não me transportasse para ela, para o mundo dela que se tornou nosso, aquela cama de colchão duro e quadros kitschs pendurados no banheiro. Ela costumava pender a cabeça para trás e esticar o corpo tenro, como se possuída por um demônio, e depois erguia-se com calma exemplar e olhava-me através do espelho embaçado, tocando as próprias partes íntimas com delicado prazer.

A agulha, tantas vezes usada, voltara a penetrar as veias do braço de Charlote, marcadas por antigos vergões e pontos arroxeados. Ela sentara na cadeira, curvara o tronco contra a escrivaninha, grudando os grandes olhos e escuros em cima de mim, como se eu fosse o responsável pela sua desgraça. A senhorita McBell não entendia o meu ponto de vista, e talvez seja por isso o motivo de tantas discussões à base de álcool, em que delirávamos olhando para a janela vendo o mundo rodar.

Ela, de repente, mingou; a claridade de sua pele desapareceu e todo o seu corpo pareceu ter sido invadido pelo mais profundo dos abismos, onde seus olhos, ainda abertos, continuaram a me olhar com melancolia, mesmo depois do último suspiro.


(14/09/2010)

Um comentário:

Unknown disse...

E leandrinho está lá, como o relógio de madeira, possuindo o direito daquele espaço!
Assim até eu quereria uma última noite com Charlote!
Adorei, Lê

Agora provavelmente estarei de volta na literatura! torça por mim heheheh

Enomre abraço